O papel da ciência e do biólogo para um futuro sustentável: uma entrevista com Hugo Fernandes-Ferreira
No dia 3 de setembro, o Brasil celebra o Dia do Biólogo, uma data que marca os 45 anos da regulamentação da profissão pela Lei 6.684 de 1979 [1], e que impulsionou a criação dos Conselhos Federal e Regional de Biologia (CFBio e CRBio, respectivamente). Para comemorar essa data especial, o Programa entrevistou o biólogo, pesquisador e professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Hugo Fernandes-Ferreira, que compartilhou suas visões sobre o futuro da biologia, as estratégias para promover uma economia sustentável e a importância do Nordeste brasileiro no enfrentamento das mudanças climáticas.
Ao fundo, o biólogo Hugo Fernandes-Ferreira atuando no resgate de uma onça-pintada (Panthera onca). Imagem: Conselho Regional de Biologia
A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA COMO MECANISMO DE ENFRENTAMENTO ÀS FAKE NEWS E À DEGRADAÇÃO AMBIENTAL
Professor da UECE e colaborador da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Hugo Fernandes-Ferreira possui mais de 10 anos de experiência na popularização da ciência, sendo reconhecido pela revista GQ como um dos Influenciadores do Conhecimento no Brasil. Atuando em múltiplos projetos, desde podcasts até colaborações com o governo do Estado do Ceará, ele enfatiza a importância dos divulgadores científicos nos meios digitais para combater a disseminação de notícias falsas: “O uso de redes sociais hoje em dia é fundamental, até mesmo para contornar o que é feito do outro lado [disseminação de fake news]. É um instrumento muito bacana, mas também pode servir como um instrumento de anticiência, tão destrutivo quanto às mudanças climáticas.” Hugo destaca ainda que é essencial ter instrumentos de divulgação científica voltados à popularização, que atinjam tanto a população quanto os conteúdos que ela consome.
Em 2022, Hugo participou como coautor de um artigo [2] que explorou a vulnerabilidade socioecológica e o risco de emergência de zoonoses no Brasil, evidenciando como as pressões antropogênicas sobre os ecossistemas, aliadas à vulnerabilidade social, estão contribuindo para a disseminação de patógenos e doenças ainda não estudadas: “A caça causa um problema ambiental de larga escala e, apesar de não ser mais uma atividade de subsistência, essa cultura [da caça por subsistência] foi o ponto inicial para o problema que enfrentamos hoje. Especificamente no Nordeste brasileiro, temos preocupações com o Mycobacterium leprae, patógeno causador da hanseníase, que está diretamente relacionado à caça de tatu – uma das práticas mais comuns na região, agravada pela caça com cães.”, destaca. O pesquisador também alerta que, embora os tatus capturados sejam soltos, o simples contato com o animal já aumenta o risco de contaminação, tornando essa prática uma questão de saúde pública: “A pandemia de Covid-19 já ilustrou a proporção que doenças relacionadas ao consumo de animais silvestres podem causar. Portanto, os mercados e comércios relacionados à caça no país, especialmente no Nordeste, onde essa atividade tem raízes culturais profundas, são um alerta para possíveis contaminações.”, finalizou.
Tatu-galinha (Dasypus novemcinctus), uma das espécies que mais sofre com a caça. Na imagem, o animal foi encontrado por um motorista e entregue à Polícia Ambiental Militar. Imagem: PPMA – Porto Nacional / Ascom – Naturatins
O FUTURO DA ECONOMIA É AMBIENTAL
Dados de 2021 [3] revelaram que 16,7 milhões de pessoas visitaram as unidades de conservação (UCs) brasileiras, demonstrando que o ecoturismo responde por 1 em cada 4 viagens no país. Hugo Fernandes, responsável pelo subprojeto de “Birdwatching [observação de aves] no Ceará”, promovido pela UECE e iniciado em 2022 [4], enfatiza que conciliar a conservação ambiental com o ecoturismo é fundamental para impulsionar a economia do Estado. No entanto, ele destaca algumas lacunas que precisam ser preenchidas para maximizar esse retorno econômico: “O birdwatching é uma atividade que já movimenta grandes quantias de dinheiro ao redor do mundo, como os mais de 42 bilhões de dólares gastos com viagens por observadores de aves nos Estados Unidos [5]. No Brasil, ainda não temos dados precisos sobre essa rentabilidade, mas sabemos que há um enorme potencial.” Hugo ressalta que, em um estudo realizado no Ceará, foi identificado que, para o ecoturismo gerar um impacto significativo na economia local, é necessário investir em infraestrutura adequada, como trilhas suspensas e acessibilidade, e que essas necessidades têm sido bem recebidas pelo governo. “Embora o Ceará tenha uma biodiversidade rica, com muitas espécies de aves, a principal lacuna é a capacitação. Precisamos de treinamentos, ensino de idiomas e maior atenção do meio acadêmico para essa atividade,” diz. Ele finaliza apontando que, para expandir ainda mais o ecoturismo, é essencial fomentar as UCs por meio de incentivos políticos, científicos e econômicos.
Análises recentes da educação brasileira revelam a precarização das condições de trabalho docente e a baixa participação da população no ensino superior, acessível a menos de 20% dos brasileiros [6]. Diante desses desafios, os educadores enfrentam a tarefa adicional de comunicar e educar sobre as mudanças climáticas de maneira realista e precisa. Hugo Fernandes-Ferreira ressalta a importância de abordar os alertas sobre a emergência climática de forma equilibrada: “Os alertas e alarmes devem ser devidamente mostrados, já que o que estamos enfrentando e o que enfrentaremos são questões muito significativas. No entanto, não podemos apresentar esses problemas sem oferecer soluções.” Ele enfatiza que, embora algumas soluções possam parecer utópicas e distantes da nossa realidade política, é crucial apresentar exemplos de ações, projetos e políticas públicas que têm funcionado: “Esses exemplos evitam que fiquemos imersos numa onda de problemas, como se estivéssemos presenciando um apocalipse.”, conclui.
Uru (Odontophorus capueira), uma das aves mais raras do Nordeste, sofre com a perda de habitat e caça predatória. A sua observação só é possível nas matas mais preservadas do Maciço de Baturité (CE). Essa e outras espécies de aves podem ser visualizadas no 1º Guia de Aves do Ceará, lançado este ano por Hugo e colaboradores. Imagem: Ciro Albano/Diário do Nordeste
A sustentabilidade tem ganhado destaque nos projetos elaborados por empresas nos últimos anos. Desde trabalhos de compensação ambiental, como o replantio de árvores para mitigar impactos, até pesquisas para o planejamento de ações sustentáveis, o mercado de licenciamento ambiental no Brasil tem mostrado um crescimento significativo, com um aumento de 15,8% nas publicações relacionadas em 2022 [7]. Sócio-diretor e atual diretor de inovações da SETEG (Soluções Geológicas e Ambientais), empresa com mais de 30 anos de atuação no Nordeste brasileiro, Hugo reflete sobre a importância de ambientalistas expandirem suas atuações e enxergarem as empresas ambientais sob uma nova perspectiva: “Eu recusei o convite para me tornar sócio da SETEG várias vezes, pois meu foco era ser professor na UECE. No entanto, percebi que, dentro da academia, era possível não apenas identificar problemas, mas também propor soluções ambientais. O biólogo é muito bem treinado para apontar problemas, mas raramente somos preparados para oferecer soluções, e isso começou a me incomodar: como podemos propor soluções ao mercado?”, pondera.
O pesquisador destaca a importância de aproximar o meio acadêmico do mercado e destaca a importância de empresas sérias trabalharem com o meio ambiente, evitando que o termo sustentabilidade seja usado para mascarar ações de degradação ambiental: “A academia tem a capacidade de desenvolver soluções para os desafios enfrentados pelo mercado. Muitos profissionais da área ambiental se formam todos os anos, mas a maioria não segue para a docência. Então, para onde esses profissionais vão? Na SETEG, meu primeiro grande objetivo foi ampliar um portfólio de ESG (Environmental, Social, and Governance) mais robusto, especialmente para viabilizar o crescimento de projetos de economia ambiental. Isso inclui a aplicação de selos e certificações, mecanismos de redução tributária, acesso a linhas de crédito e financiamento para viabilizar projetos socioambientais, e a transformação desses projetos em negócios sustentáveis para empresas de médio a grande porte que são nossas parceiras”, explica.
Campus Itaperi da UECE, onde a SETEG desenvolve projetos de restauração ecológica. A iniciativa possibilita a divulgação do trabalho da empresa dentro do ambiente universitário, atraindo jovens pesquisadores para esse mercado a partir de experiências práticas. Imagem: UECE
Para ficar por dentro do trabalho do Hugo, siga-o no Instagram e acompanhe as novidades no perfil oficial da SETEG. O Programa Amigos da Onça agradece pela entrevista e deseja ao Hugo, assim como a todos os leitores do PAO, um feliz Dia do Biólogo!
Entrevista e texto por: Maria Eduarda Ferreira Rosinda
REFERÊNCIAS
- FEDERAL, Governo. LEI Nº 6.684, DE 3 DE SETEMBRO DE 1979. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6684.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%206.684%2C%20DE%203%20DE%20SETEMBRO%20DE%201979&text=Regulamenta%20as%20profiss%C3%B5es%20de%20Bi%C3%B3logo,Biomedicina%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.. Acesso em: 31 ago. 2024.
- WINCK, Gisele R.; RAIMUNDO, Rafael L. G.; FERNANDES-FERREIRA, Hugo; BUENO, Marina G.; D’ANDREA, Paulo S.; ROCHA, Fabiana L.; CRUZ, Gabriella L. T.; VILAR, Emmanuel M.; BRANDÃO, Martha; CORDEIRO, José Luís P.. Socioecological vulnerability and the risk of zoonotic disease emergence in Brazil. Science Advances, [S.L.], v. 8, n. 26, p. 1-11, jul. 2022. American Association for the Advancement of Science (AAAS). http://dx.doi.org/10.1126/sciadv.abo5774. Disponível em: https://www.science.org/doi/full/10.1126/sciadv.abo5774. Acesso em: 27 jul. 2024.
- TURISMO, Ministério do. Ecoturismo foi responsável por 1 em cada 4 viagens a lazer realizadas no país. Disponível em: https://www.gov.br/turismo/pt-br/assuntos/noticias/ecoturismo-foi-responsavel-por-1-em-cada-4-viagens-a-lazer-realizadas-no-pais. Acesso em: 31 ago. 2024.
- CEARÁ, Universidade Estadual do. Uece inicia projeto que visa ajudar na preservação de espécies ameaçadas de extinção. Disponível em: https://www.uece.br/noticias/uece-inicia-projeto-que-visa-ajudar-na-preservacao-de-especies-ameacadas-de-extincao/. Acesso em: 31 ago. 2024.
- MORONI, Edson. 96 milhões de observadores de aves no Estados Unidos – Dados sobre o Turismo de Vida Silvestre. Disponível em: https://blog.passarinweb.com.br/96-milhoes-de-observadores-de-aves-no-estados-unidos-dados-sobre-o-turismo-de-vida-silvestre/. Acesso em: 31 ago. 2024.
- POPULAR, Movimento Brasil. O que está colocado para educação brasileira em 2024? Disponível em: https://brasilpopular.org/artigo-o-que-esta-colocado-para-educacao-brasileira-em-2024/. Acesso em: 31 ago. 2024.
- ECONÔMICO, Valor. Empresas que publicaram relatório de sustentabilidade cresceram para 15,8% em 2022, diz IBGE. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/03/20/empresas-que-publicaram-relatorio-de-sustentabilidade-cresceram-para-158percent-em-2022-diz-ibge.ghtml. Acesso em: 31 ago. 2024.