De norte a sul: como a onça-parda reflete a diversidade do continente americano

Pela sua importância, no dia 30 de Agosto, celebramos o dia internacional da onça-parda. Apesar de pertencerem a uma mesma espécie, as populações de onça-parda apresentam diferenças significativas em morfologia, genética e comportamento, moldadas por milhares de anos de evolução e adaptação a ambientes tão distintos quanto desertos áridos, florestas tropicais densas e montanhas nevadas.

Indivíduo de P. concolor na Mata Atlântica brasileira. Foto por Vianey Bentes. Fonte: g1.globo

A espécie já foi descrita em até trinta e duas subespécies ou populações geográficas, número que variou consideravelmente ao longo do tempo em decorrência dos avanços em genética molecular e das sucessivas revisões taxonômicas. Até hoje, sua classificação continua sendo ajustada. No início dos anos 2000, por exemplo, análises de DNA mitocondrial e de marcadores nucleares levaram ao reconhecimento de seis grandes grupos evolutivos de onças-pardas: Puma concolor couguar, Puma concolor costaricensis, Puma concolor capricornensis, Puma concolor concolor,  Puma concolor  cabrerae  e Puma concolor puma. Esses grupos são respectivamente residentes de América do Norte, América Central, Amazônia, Região Central da América do Sul e Andes. Até 2003, a população do sudeste dos Estados Unidos, era considerada uma subespécie isolada: Puma concolor coryi, mas foi incluída como sinonímia taxonómica da Puma concolor couguar

Mapa de distribuição da espécie Puma Concolor.Fonte: IUCN RED LIST. A mancha laranja mostra a distribuição atual e a roxa, como de possível ocorrência.

Desenho esquemático mostrando as principais diferenças entre algumas subespécies de puma do continente americano. Fonte: FanCat

Contudo, em 2017, Kitchener et al. propuseram uma revisão que reduziu essas subdivisões a apenas duas categorias principais, com base em estudos genéticos: Puma concolor concolor (suçuarana ou puma sul-americano) e Puma concolor couguar (puma norte-americano).

 

Onça-parda (Puma concolor) registrada na região do Boqueirão da Onça, norte da Bahia.. Foto: Programa Amigos da Onça.

O corpo da onça-parda é uma das suas principais armas de sobrevivência, e justamente por isso apresenta variações significativas entre as regiões. Em geral, indivíduos que vivem em áreas frias e abertas tendem a ser maiores, enquanto populações tropicais apresentam porte reduzido. Essa regra segue um padrão biogeográfico conhecido como regra de Bergmann, comum em mamíferos. Nesse sentido, no Canadá e nas Montanhas Rochosas os pumas podem ultrapassar 100 kg, com corpo robusto, pelagem mais espessa e cauda proporcionalmente longa para auxiliar no equilíbrio em terrenos íngremes; já nas florestas amazônicas, a suçuarana raramente ultrapassa 70 kg, apresentando corpo mais esguio, adaptado para se deslocar com agilidade em meio à vegetação densa. Além disso, a coloração também varia: indivíduos de regiões áridas tendem a ter pelagem mais clara, quase amarelada, auxiliando na camuflagem em ambientes desérticos, como ocorre com populações do México e sul e sudoeste dos Estados Unidos. Na Amazônia e Mata Atlântica, predomina o tom marrom-escuro ou avermelhado, que se mistura ao sombreamento da floresta.

Na Caatinga, as onças-pardas são conhecidas como bodeiras, lombo-preto, onça vermelha, entre outros nomes, e desempenham papel essencial como predadores de topo, regulando populações de presas e mantendo o equilíbrio ecológico em um ambiente marcado por extremos climáticos. Adaptadas à vegetação espinhosa e à escassez hídrica, essas populações desenvolveram características singulares: patas com pelos mais densos que lhes permitem caminhar em solos aquecidos, vibrissas mais grossas para melhor percepção do ambiente e porte relativamente menor e mais esbelto em comparação a outros biomas, pesando em média de 30 a 50 kg na vida adulta. A água, recurso crítico, é transmitida como herança cultural: mães ensinam aos filhotes os pontos de água para a sobrevivência nas secas prolongadas. Para encontrar recursos tão dispersos, as onças catingueiras ampliam seus deslocamentos e podem ocupar áreas de vida que chegam a 500 km². No entanto, a caça ilegal, os atropelamentos em rodovias que cortam o bioma e a contínua perda de habitat têm reduzido drasticamente seus números.

Young e Goldman, em seu livro de 1946 “The Puma: Mysterious American Cat”, analisam o puma como um animal emblemático e bem adaptado a diferentes ambientes.

No campo da genética, os estudos mostram que as populações sul-americanas são mais diversas do que as norte-americanas. Isso se explica pela história evolutiva: acredita-se que as onças-pardas tenham se originado na América do Sul e, posteriormente, colonizado o restante do continente. Durante o Pleistoceno, algumas populações do hemisfério norte chegaram a ser extintas, restando apenas pequenos bolsões que com o passar do tempo se expandiram novamente.

Um caso emblemático é o da onça-parda da Flórida (P. concolor coryi), que sofreu um gargalo populacional severo devido ao desmatamento e à caça. No final do século XX, restavam menos de 100 indivíduos, com alta taxa de consanguinidade, o que causava problemas genéticos, como deformidades cardíacas e má formação de espermatozoides. Para salvar a população, foram introduzidos pumas do Texas, restaurando parte da variabilidade genética. Hoje, estima-se que existam cerca de 300 exemplares na região sudeste dos Estados Unidos, mostrando que apesar da espécie P. concolor como um todo ter caráter pouco preocupante na lista de conservação de espécies (IUCN), suas variações regionais podem sofrer com pressões ambientais e atingir patamares preocupantes. De acordo com a última avaliação do risco de extinção da espécie, ela foi considerada “quase ameaçada” e na Caatinga, e em âmbito nacional a suçuarana é considerada “em perigo” de extinção.

Reintrodução de pumas texanas no estado da Flórida para maior variabilidade genética. Fonte: Florida Fish and Wildlife Conservation Commission.

Embora geralmente descritas como solitárias, as onças-pardas ajustam seus hábitos conforme o ambiente. Em áreas desérticas e montanhosas, podem ter territórios imensos, ultrapassando 800 km² para machos adultos, já que a disponibilidade de presas é baixa. Na Amazônia, ao contrário, onde há relativa abundância de presas de médio porte, os territórios são menores e sobrepostos, e consequentemente a densidade populacional é maior. O Programa Amigos da Onça monitorou por radiocolar a primeira onça-parda da Caatinga durante 10 meses e conseguiu dados muito importantes sobre a espécie. A área de vida no bioma foi calculada em até 500 km².

 

Fotos da captura e avaliação da Vitória, um  indivíduo de P.concolor, pelo programa amigos da onça. Fonte: Arquivos internos do programa

No aspecto social, estudos recentes têm desafiado a visão tradicional de que o puma é estritamente solitário. Em algumas regiões, principalmente onde há abundância de presas, observou-se tolerância entre indivíduos e até partilha de carcaças, sugerindo comportamentos mais complexos do que se imagina. Outro ponto de destaque é o comportamento predatório: nos Estados Unidos e Canadá, as onças-pardas caçam principalmente cervídeos, como veados-de-cauda-branca e alces jovens, enquanto na América do Sul a dieta é muito mais variada em termos de espécies, incluindo desde pacas e capivaras até pequenos répteis. 

Além das diferenças biológicas, a diversidade cultural em torno da espécie também chama a atenção. Do “cougar” canadense e estadunidense ao “leão-baio” gaúcho, passando pelo “puma” andino, pela “suçuarana” na região do sudeste brasileiro e até “bodeira” na caatinga, cada região do continente deu ao felino um nome distinto, refletindo sua presença marcante no imaginário popular. Apesar de sua vasta distribuição, as subespécies de onça-parda enfrentam ameaças crescentes, sobretudo a fragmentação de habitats, os conflitos humano-fauna e a expansão da malha rodoviária. No Brasil, não são raros os registros de onças-pardas atropeladas em rodovias, um impacto que afeta especialmente populações já isoladas e vulneráveis. As diferenças morfológicas e genéticas tornam ainda mais urgente a conservação local de cada subpopulação, já que perder uma dessas linhagens significa apagar milhares de anos de adaptação a um ambiente específico.

Risco de extinção e nomes populares da P.concolor. Fonte: Programa de Conservação Mamíferos do Cerrado

A onça-parda, portanto, é um exemplo fascinante de como uma mesma espécie pode se reinventar de norte a sul, moldada por climas, ecossistemas e desafios distintos. E ao conhecermos mais sobre ela, não apenas compreendemos melhor a biologia de um dos mais emblemáticos felinos do mundo, mas também aprendemos sobre a própria história natural das Américas.

Texto por Gustavo Gomes da Luz Pereira

Referências:

PIMM, S. L. et al. The genetic rescue of the Florida panther. Animal Conservation, v. 9, n. 1, p. 115-122, maio 2006. Estudo que relata o sucesso de introdução de pumas do Texas para recuperação genética da população da Flórida. 

JOHNSON, W. E. et al. Genetic restoration of the Florida panther. Science, v. 329, n. 5999, p. 1641-1645, 24 set. 2010. Detalha os resultados da restauração genética da população da Flórida. 

TEXAS TAIL SAVES FLORIDA PANTHERS, FOR NOW. Wired Science, 23 set. 2010. Notícia sobre o reforço genético via introdução de fêmeas do Texas, e os efeitos positivos.

TEXAS PUMA GENES RESCUE FLORIDA PANTHERS FROM EXTINCTION — FOR NOW. LiveScience, 11 ago. 2025. Reporta a recuperação populacional e os avanços genéticos observados após a translocação. 

GASTON, M. V. et al. Native prey, not landscape change or novel prey, drive cougar (Puma concolor) distribution at a boreal forest range edge. Ecology and Evolution, Wiley, 2024. Evidencia a amplitude de distribuição geográfica e adaptabilidade da espécie. 

ALBERICO, M. et al. Food habits of the cougar (Puma concolor) (Carnivora: Felidae) in the Central Andes of the Colombian Coffee Region. Paz & Sociedade, SciELO, 2018. Descreve diversidade de dieta em habitat tropical montanhoso. 

JOHNSON, W. E.; CULVER, M.; PEÇON-SLATTERY, J.; et al. Molecular evidence for a recent demographic expansion in the puma (Puma concolor) (Mammalia, Felidae). Genetics and Molecular Biology, SciELO Brasil, 2000. Trabalhos genéticos sobre divergência e colonização sul-americana da espécie. 

YOUNG, S.P.; GOLDMAN, E.A. (1946) The Puma, Mysterious American Cat. The American Wildlife Institute, Washington DC.

 

 

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