A CULTURA COMO FERRAMENTA DE CONSERVAÇÃO E ANCESTRALIDADE DA CAATINGA

 

Ao mencionar a região da Caatinga e os seus aspectos culturais, o nosso imaginário nos faz pensar sobre o típico sertanejo, aquele que convive com simplicidade e sabedoria no sertão do nosso Brasil, sempre com um sorriso largo e resiliente perante aos desafios, e nas maravilhas do bioma. No entanto, para muitos, a figura do sertanejo e da Caatinga é distorcida na maioria dos meios de comunicação, sendo reducionista e induzindo o espectador a uma percepção equivocada e um tanto quanto estereotipada sobre a diversidade da Caatinga. Assim, em comemoração ao Dia Nacional da Caatinga, abordaremos a importância da presença dos povos originários e sertanejos na conservação desse bioma, tanto nos aspectos culturais, quanto nos aspectos que reafirmam a sua importância bioecológica.

Mapa, de 2016, indicando a distribuição das Unidades de Conservação da Caatinga. Imagem: Marília Gomes Teixeira

ETNOBIOLOGIA

A etnobiologia compõe uma das etnociências fundamentadas nas propostas científicas realizadas ao final do século XIX, que tinham como foco de pesquisa registrar a variabilidade da utilização de plantas e animais pelos membros de diferentes culturas (ROSA, 2014). Apesar disso, somente meio século depois (entre as décadas de 50 e 60) as etnociências firmaram-se enquanto campos do conhecimento, a partir de estudos antropológicos desenvolvidos por integrantes de grupos culturais distintos (CLÉMENT, 1998), tendo a primeira citação, no meio científico, voltada ao termo Etnociências no índex do livro The Outline of Cultural Materials, escrito em 1950, por George Peter Murdock e seus colaboradores. Assim, a etnobiologia, enquanto ciência, tem como objetivo conhecer, na prática, através de pesquisa participante e comprometida socialmente, compreender como o modo de vida coletivo dessas divergentes populações moldam o estudo da região (GULLICH, 2009).

OS POVOS SERTANEJOS

Até aqui, expusemos como as ciências complementam-se para a compreensão dos elementos sociais, culturais e antropológicos de uma região. Agora, adentrando na população da Caatinga, faremos dois recortes populacionais voltados aos povos sertanejos e aos povos indígenas, evidenciando o peso e relevância histórica dessas populações no processo de contrução da identidade do bioma.

A introdução do gado bovino na Zona da Mata canavieira, logo no início do ciclo do açúcar (século XVI), foi motivada pela tração animal para os canaviais e para a alimentação da população camponesa. Com o passar dos anos, e sem nenhuma forma de controle populacional, o número desses animais expandiu e passou a prejudicar os canaviais de cana, resultando na expulsão dos portugueses camponeses e do gado para o que, hoje, conhecemos como Caatinga, concentrando-se no recôncavo baiano.

Zona da Mata - Localização, características, mapa, clima, economia

O Nordeste brasileiro é subdivido em: Meio-Norte, Sertão, Agreste, e Zona da Mata. Na imagem, o Parque Estadual Serra do Brigadeiro, localizado na Zona da Mata.

Essa migração de regiões resultou em constantes conflitos com os povos indígenas, principalmente em áreas de seguimento dos cursos dos rios pelo Semiárido nordestino (RIBEIRO, 1995). Além disso, a miscigenação foi o fator crucial para o surgimento de uma nova camada social componente do nordeste: os sertanejos. Na região da Chapada Diamantina, a formação histórica deu-se por causa da extração de pedras preciosas, com uma população formada a partir da miscigenação entre os povos indígenas, portugueses e africanos (SILVA, 2024).

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Sertanejos na Caatinga, Bahia, em gravura da década de 1810. Imagem: Artes União Bahia

Tendo em vista esses fatores, a relação dos ocupantes do sertão com a terra elevou o estudo da sua sociologia e geografia para uma interpretação de como eles ocupam e atuam no espaço. Como proposto por Penna (1992) ao interrogar sobre “o que faz ser nordestino?”, a autora reforça que a configuração de identidade de um indivíduo não se limita à existência própria mas, sim, expande-se à convivência com o território. Portanto, estabelecemos o primeiro ponto para a compreensão total da importância das diferentes populações para o bioma: a relação entre identidade e território. A vida nessas regiões era difícil e, apesar da abundância de leite e carne, a seca sempre esteve presente, originando práticas de manuseio do solo para garantir a sobrevivência dessas populações ao longo dos anos (para saber mais sobre, leia nosso texto sobre o Dia Nacional da Conservação do Solo).

OS POVOS INDÍGENAS DA CAATINGA: O PASSADO QUE CONTA O PRESENTE E O FUTURO

Em levantamento das Unidades de Conservação e Terras Indígenas do Bioma Caatinga, realizado pelo Governo Federal em 2009, haviam 36 territórios indígenas registrados. Apesar de serem os povos mais antigos a habitar o bioma, eles são as principais vítimas da migração forçada pelo colonialismo e agropecuária, adaptando a sua sobrevivência e luta pela continuidade do conhecimento tradicional.

As primeiras impressões antropológicas da Caatinga foram registradas no chamado Raso da Catarina, composto pelos municípios de Paulo Afonso, Jeremoabo, Canudos e Macururé, na Bahia. A etimologia do nome deriva do relevo em forma de tabuleiro, recortado por ravinas e cânions (”rasos”) e homenageia, também, uma antiga moradora e líder local, Catarina, que lutou contra a seca na região. Hoje em dia, essa área é considerada uma reserva ecológica e é administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

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Região da Rasa da Catarina. Imagem: Steff Suconic

Os povos indígenas da Caatinga são diversos, como os Pankararé, Kantaruré, Xucuru-Kariri, Tuxá, Tumbalalá, entre outros. Assim como ocorreu com os povos do Cerrado, os indígenas da Caatinga também se organizaram enquanto movimento social a fim de organizar e articular a sua resistência e tradição cultural, por meio do APOINME (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo). A homologação das terras e a identidade indígenas passaram a ser reconhecidas pelo Estado somente no início dos anos 90. Destacamos alguns aspectos culturais e tradicionais dos povos habitantes da Caatinga.

  • Povo Pankaru: em 2003, a comunidade abrigava um conjunto de 14 famílias, concentradas na “boca” da mata de Serra do Ramalho, localizado no oeste baiano. Como ritual, praticam o toré, dividido entre a “dança do toré” para dias de festa e comemoração, assim como o “toré dos encantados”, que é praticado nas matas a fim de atenuar as diferenças étnicas e receber entidades e encantos.

Comunidade Pankaru. Foto: Padre Manuel Bonfim da Conceição, final da década de 1990.

Comunidade Pankaru. Foto: Padre Manuel Bonfim da Conceição, final da década de 1990. Fonte: Povos Indígenas no Brasil

  • Povo Pankararu: a aldeia Batida foi fundada após o casal, composto pela indígena Rosa Baleia e um morador da Serra Grande, Balduíno, unir-se e fundarem um novo povoado. Devido ao solo seco e arenoso, as suas construções apresentam pouca variabilidade, sendo a maioria em taipa e, como ritual cosmológico, destacam ritos de possessão (uma outra vertente do “toré”, apresentado anteriormente) associados à cura e ao culto de antepassados.

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Povo Pankararu em ritual do Toré, cultuando os povos antepassados. Imagem: Lúcia Gaspar

  • Povo Tuxá: diferente do apresentado até aqui, as aldeias desses povos também podem ser encontradas em áreas urbanas. Isso é uma consequência da inundação das suas terras tradicionais após a construção de uma barragem hidrelétrica, o que ocasionou na dispersão desses povos nos limites de municípios como Ibotirama e Rodelas (ambos localizados na Bahia). Não há registros da origem da língua do povo Tuxá, acreditando que a sua língua é exclusiva. Durante o “Toré”, utilizam da jurema e do fumo para atrair as forças protetoras da aldeia.

 

O Povo Tuxá. Imagem: Sossego da Flora

REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA

As representações da cultura sertaneja na mídia existem há muito tempo, e em diferentes formatos. Do forró ao xaxado, baião, literatura e culinária, cada um traz consigo uma lembrança cultural de como teve o primeiro contato com essas manifestações artísticas ao decorrer do crescimento.

O forró surgiu no nordeste brasileiro na década de 30 e, após 1950, tornou-se popular no país. O poeta, cantor e compositor Luiz Gonzaga foi o responsável por popularizar esse estilo musical, utilizando da sanfona, zabumba e triângulo nas suas apresentações. As letras das músicas carregam as vivências e resistência do povo nordestino, fixando elementos que marcam a cultura do sertão (WENDLING, 2024). Existem algumas teorias sobre a etimologia da palavra, mas, de acordo com a Enciclopédia da Música Brasileira, o termo é derivado da palavra africana “forrobodó” que, traduzido, significa arrasta-pé, farra, troça.

O livro "Luiz Gonzaga: 110 anos do Nascimento" deve ser lançado em junho de 2022

O cantor Luiz Gonzaga se apresentando em trajes culturalmente marcantes, tocando sanfona. Imagem: Brasil de Fato

Outra forma de expressão artística da cultura nordestina é a literatura de Cordel. Também conhecida como folheto, esse estilo de poesia chegou ao Brasil no século XVIII, trazida pelos portugueses. A sua apresentação se dava pela impressão das poesias em folhetos ilustrados com o processo de xilogravura, sendo expostas em áreas onde havia maior circulação de pessoas para que, quem tivesse interesse, levasse um folheto consigo. Hoje em dia, esses folhetos podem ser encontrados em feiras populares espalhadas pela região Nordeste.

A esquerda, dgravura e Sant Agustí (Barri de la Ribera, Barcelona) ilustra como os cordéis eram vendidos no início, em 1850. A direita, como são encontrados atualmente na região Nordeste. Imagens: Wikipedia

LEIS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

As unidades de conservação (UCs) são importantes aliadas na delimitação e resistência dos povos originários e do caráter social e histórico de cada região da Caatinga. De acordo com a base de dados do Ministério do Meio Ambiente, apenas 8,76% do território da Caatinga está sob proteção de alguma das 258 unidades de conservação; dessas unidades, somente 6 terras indígenas foram declaradas UCs no bioma (Terras Indígenas no Brasil), um processo de reconhecimento que outros povos não conseguiram por serem dizimados antes. As UCs, que também incluem as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) aliadas à gestão estadual são a principal estratégia para a manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, em decorrência da constante destruição e degradação dos ambientes naturais. 

No Legislativo, a partir da Lei nº 9.985/00, as UCs só poderão conceder o uso de seus recursos naturais quando este ocorrer de forma sustentável e em compatibilidade com a natureza. A divisão dos grupos que fazem o uso sustentável das áreas protegidas são: Área de Proteção Ambiental (APA), área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE), Floresta Nacional (FLONA), Reserva de Fauna (REFAU), entre outros.

Área e número das Unidades de Conservação da Caatinga. Imagem: Ministério do Meio Ambiente

Apesar de ser o único bioma restrito aos limites do território brasileiro, a Caatinga ainda sofre com a baixa proteção e gestão de suas áreas. Como consequência, sofre com a invisibilidade de importantes traços culturais, sociais, ambientais e históricos ao longo dos séculos. Assim, ao ouvir falar sobre o Dia da Caatinga novamente, esperamos que você mencione a importância dos povos que sustentam e nutrem esse bioma até hoje, não esquecendo de como todas essas contribuições são fundamentais para o Brasil.

Nordeste do Semi-Árido

Da caatinga e do sertão

Do Polígono das Secas

Onde reinou Lampião

Conselheiro em sua fé

Desejou transformação

[…]

A chuva traz a esperança

Poesia na trajetória

O rebanho, a plantação

A água faz boa história

Se chove tem alegria

Para o sertão é a glória

Poema de cordel, por Gustavo Dourado.

REFERÊNCIAS

(1) HAUFF, Shirley N.. Unidades de Conservação e Terras Indígenas do Bioma Caatinga. 2008. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/biodiversidade-e-ecossistemas/ecossistemas/biomas/arquivos-biomas/mapa_das_ucs.pdf. Acesso em: 25 abr. 2024.

(2) ATRAN, Scott. Folk biology and the anthropology of science: cognitive universals and cultural particulars. Behavioral And Brain Sciences, [S.L.], v. 21, n. 4, p. 547-569, ago. 1998. Cambridge University Press (CUP). http://dx.doi.org/10.1017/s0140525x98001277. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/13194223_Folk_Biology_and_the_Anthropology_of_Science_Cognitive_Universals_and_Cultural_Particulars. Acesso em: 25 abr. 2024.

(3) AGRAWAL, Arun. Dismantling the Divide Between Indigenous and Scientific Knowledge. Development And Change, [S.L.], v. 26, n. 3, p. 413-439, jul. 1995. Wiley. http://dx.doi.org/10.1111/j.1467-7660.1995.tb00560.x. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-7660.1995.tb00560.x. Acesso em: 25 abr. 2024.

(4) ALMEIDA, M. G. de. Uma Leitura Etnogeográfica do Brasil Sertanejo. GeoTextos, [S. l.], v. 18, n. 2, 2022. DOI: 10.9771/geo.v0i2.52226. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/geotextos/article/view/52226. Acesso em: 26 abr. 2024.

(5) ROSA, Milton. APROXIMANDO DIFERENTES CAMPOS DE CONHECIMENTO EM EDUCAÇÃO: A ETNOMATEMÁTICA, A ETNOBIOLOGIA E A ETNOECOLOGIA. Vydia, Santa Maria, v. 34, n. 1, p. 1-14, jun. 2014. Disponível em: https://cead.ufop.br/images/NOTICIAS_2014/30-05-14_Artigo Vidya.pdf. Acesso em: 25 abr. 2024.

(6) SILVA, Ana Paula Soares da (2014). APA Estadual Serra do Barbado: dos empecilhos à possível viabilidade socioambiental de um território no Circuito do Ouro – Chapada Diamantina (PDF) (Dissertação de mestrado). Salvador: UFBA. p. 22. Acesso em: 25 abr. 2024.

(7) RIBEIRO, Darcy (1995). O povo brasileiro (PDF) 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. pp. 338–362. Acesso em: 24 abr. 2024.

(8) [S.I.]. Povo Pankaru. 2020. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Pankaru. Acesso em: 26 abr. 2024.

(9) [S.I.]. Povo Kantaruré. 2020. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Pankaru. Acesso em: 26 abr. 2024.

(10) [S.I.]. Povo Tuxá. 2020. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Pankaru. Acesso em: 26 abr. 2024.

(11) WENDLING, Camila. Do nordeste para todo o Brasil: como o forró se tornou um dos gêneros mais populares no país? 2024. Disponível em: https://blog.chicorei.com/origens-do-forro-no-brasil/. Acesso em: 26 abr. 2024.

(12) TEIXEIRA, Marília Gomes. UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA CAATINGA: DISTRIBUIÇÃO E CONTRIBUIÇÕES PARA CONSERVAÇÃO. 2016. 74 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ecologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/21599/1/UnidadesConservaçãoCaatinga_Teixeira_2016.pdf. Acesso em: 26 abr. 2024.

Escrito por: Maria Eduarda Ferreira Rosinda (Estagiária voluntária do PAO).

 

 

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