Folclore e Fauna: Um Diálogo Entre Cultura e Conservação
O folclore brasileiro é um vasto e complexo patrimônio cultural, formado por lendas, mitos, músicas, danças, festas e saberes que atravessam gerações. A própria palavra folclore vem do inglês folk lore, que significa “saber do povo”, refletindo o conhecimento e as tradições transmitidas oralmente ao longo do tempo. No Brasil, ele é fruto da mistura entre tradições indígenas, africanas e europeias, e representa não apenas um conjunto de histórias e costumes, mas também uma forma de identidade e pertencimento. Figuras como o Saci-Pererê, o Curupira e a Iara transmitem valores importantes de proteção: alertam sobre perigos e reforçam o vínculo das pessoas com a natureza. Essas narrativas, quando preservadas e reinterpretadas, podem se tornar aliadas da conservação ambiental, estimulando o respeito e a admiração pela fauna e flora.
Xilogravura “O Discurso da Onça” do artista e cordelista J.Borges. A força simbólica do animal revela sua importância no imaginário popular como guardiã da mata e porta-voz da natureza. Fonte: Google Arts&Culture
No entanto, além do valor simbólico e narrativo, existem crendices populares que, muitas vezes, envolvem práticas que podem ser prejudiciais ao meio ambiente. Enquanto o folclore conta histórias sobre seres encantados que protegem a mata, certas crendices podem reforçar à caça de animais para a retirada de garras, penas ou dentes, na crença de que esses elementos trarão a força, a agilidade ou a coragem inerentes àquele animal.
Entre as mais comuns, destaca-se o uso da gordura de répteis na produção de óleos populares considerados ‘milagrosos’. Jacarés, jabutis e serpentes são eventualmente caçados para esse fim. Acredita-se que a gordura desses animais possua propriedades medicinais capazes de aliviar dores reumáticas, problemas respiratórios e inflamações. Esses óleos são vendidos informalmente como remédios naturais, sem qualquer comprovação científica de eficácia, mas com forte apelo cultural e simbólico. A demanda por esses produtos contribui diretamente para o aumento da caça, tráfico e comércio ilegal de espécies silvestres, incluindo algumas já ameaçadas de extinção.
Esse é um ponto cultural sensível, pois muitas dessas crenças foram transmitidas oralmente ao longo de gerações e fazem parte do imaginário coletivo, mas seus impactos sobre a fauna e os ecossistemas não devem ser ignorados.
Figura ilustrativa que traz a dualidade entre lendas que protegem e crenças que levam à caça. Imagem gerada por Inteligência Artificial
Em áreas rurais e tradicionais de todo o mundo, ainda é comum encontrar exemplos de uso de partes de animais para fins místicos ou medicinais. Garras de predadores são transformadas em amuletos contra mau-olhado e pó feito de ossos e chifres é vendido como suposto afrodisíaco ou fortificante. A demanda por esses produtos é tão intensa que levou à exploração excessiva de espécies ameaçadas, à exemplo dos tigres (Panthera tigris) no continente asiático, que sofreram enorme pressão comercial no mercado de remédios tradicionais. Com a escassez da espécie e o aumento da fiscalização, partes de outros grandes felinos, como as onças, começaram a ser usadas como substitutas nas ‘receitas’, alimentando um mercado clandestino prejudicial à fauna sul-americana.
Apreensão de chifres de rinoceronte na Malásia, material muito utilizado na medicina tradicional asiática como afrodisíaco e cura para vários distúrbios. (Fonte: G1)
A – Produtos com peles de felinos. Fonte: M. Herrera, Museo NKM, B – Apreensão de peles em Buenos Aires em maio/22. Fonte: Ministerio de Ambiente y Desarrollo Sostenible de la Nación Argentina.
Na Caatinga, algumas comunidades acreditam que o chocalho da cascavel traz proteção espiritual, que o casco de tatu serve como amuleto contra doenças ou que o couro de determinadas serpentes pode ser usado em cintos para “dar sorte” ou “fechar o corpo” contra maus espíritos. Apesar de integrarem o repertório cultural local, essas práticas podem alimentar redes ilegais de caça e comércio, reduzindo populações de espécies e enfraquecendo ecossistemas ameaçados.
Produtos feitos com patas e garras de onças. Fonte: GERFOR/ODM.
A questão se torna ainda mais delicada porque, para quem pratica ou acredita nessas tradições, não se trata apenas de comércio, mas de algo ligado à identidade, à história familiar e a crenças profundas. Por isso, simplesmente proibir ou condenar essas práticas não resolve o problema. Então, qual seria o caminho viável para lidar com isso?
Uma das formas é o trabalho de educação ambiental e conscientização que respeite o valor cultural das comunidades, mas ao mesmo tempo apresente alternativas éticas e sustentáveis para o bioma. Uma estratégia é reinterpretar o simbolismo dessas crenças, substituindo elementos retirados da natureza por representações feitas de outros materiais de forma sustentável, como madeira, cerâmica ou fibras vegetais. Outra possibilidade é resgatar lendas e histórias folclóricas que reforcem o respeito à vida animal, mostrando que a força, a saúde e a proteção vêm da harmonia com a natureza, e não da exploração de seus seres.
Projetos de educação ambiental e valorização cultural já têm mostrado resultados positivos em algumas regiões. Oficinas comunitárias, feiras culturais, peças de teatro e atividades em escolas têm sido usadas para dialogar com diferentes gerações, esclarecendo que preservar os animais é também preservar as histórias e o imaginário que os envolvem. Ao promover atividades como trilhas interpretativas, observação de fauna, histórias e artesanato temático sem uso de partes de animais, é possível transformar crenças prejudiciais em celebrações da biodiversidade. Preservar é adaptar e recriar tradições para que continuem significativas sem causar danos, tendo como principal desafio encontrar o equilíbrio, reconhecendo que o valor cultural de uma crença não deve servir como justificativa para a destruição de uma espécie. Ao unir saberes tradicionais e conhecimento científico, podemos criar um meio em que a cultura e a conservação caminhem juntas.
No fim, tanto o folclore quanto a biodiversidade fazem parte do mesmo tesouro nacional: um patrimônio que conta nossa história e sustenta nossa vida. Perder um deles é empobrecer o outro. Respeitar as tradições e, ao mesmo tempo, proteger a fauna é a forma mais sábia e justa de garantir que, no futuro, possamos contar as histórias e ainda ter os animais vivos para ilustrá-las.
Texto por Gustavo Gomes da Luz
Referências:
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