A conectividade ecológica do São Francisco
Arte de capa do livro “Velho Chico Ilustrado” do autor José Theodomiro de Araújo, publicado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) em 2013.
O Rio São Francisco é um eixo vital que corta o Brasil sustentando ecossistemas e culturas. Nascido na Serra da Canastra, em Minas Gerais, o rio percorre mais de 2.800 quilômetros até desaguar entre Alagoas e Sergipe. Mas é em seu trecho médio, quando cruza a Caatinga, que o São Francisco revela um dos contrastes ecológicos mais impressionantes, uma coexistência entre a aridez e a abundância. O São Francisco atua como coluna vertebral hidrológica. Seus afluentes, intermitentes na maior parte do ano, dependem de pulsos sazonais de chuva, enquanto, o leito principal mantém vazão permanente. Esse caráter perene o transforma em refúgio para a fauna e flora, funcionando como um oásis. As matas ciliares, quando preservadas, formam corredores ecológicos que permitem o deslocamento de espécies e a manutenção da diversidade genética entre fragmentos isolados.
Rio São Francisco e o Forte Maurits, 1638. por Frans Post. Óleo sobre tela
Do ponto de vista ecológico, o São Francisco é um rio de transição, integrando biomas distintos (Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica) e abrigando comunidades biológicas adaptadas à variação ambiental. No trecho caatingueiro, predominam espécies como o umbuzeiro (Spondias tuberosa) e a baraúna (Schinopsis brasiliensis), que coexistem com formações ripárias de juazeiro (Ziziphus joazeiro) e ingazeira (Inga vera). Esses ambientes formam microclimas relativamente úmidos, regulando a temperatura e a umidade do ar local. Quanto à fauna associada ao rio, espécies aquáticas endêmicas, como o surubim-do-São-Francisco (Pseudoplatystoma corruscans) e o pacamã (Lophiosilurus alexandri), convivem com peixes migradores ameaçados pela fragmentação dos cursos d’água. Já nas margens, capivaras, garças e até jacarés-do-papo-amarelo encontram abrigo em áreas onde a vegetação ainda resiste. A avifauna ribeirinha é particularmente diversa, incluindo arapaçus, beija-flores e aves aquáticas que se beneficiam dos remansos e várzeas sazonais.
Mapa da Bacia do São Francisco. Fonte: Plano Diretor de Recursos Hídricos e do Enquadramento de Corpos de Água para a Bacia Hidrográfica dos Afluentes do Alto São Francisco (Disponível em: https://pdrhsf1.com.br/)
Imagem do Surubim-do-São-Francisco (Pseudoplatystoma corruscans). Fonte: Agência Sertão. Foto por Thiago Marques
Entretanto, o papel ecológico do São Francisco na Caatinga vai além da sustentação direta da fauna e flora. O rio também regula o regime hídrico subterrâneo, recarregando lençóis freáticos que abastecem poços e nascentes menores. Essa interação confere certa estabilidade aos sistemas locais. Contudo, o equilíbrio desse ecossistema tem sido historicamente comprometido por ações antrópicas. A expansão agrícola, o desmatamento das margens e a construção de grandes barragens alteraram profundamente o regime natural de cheias e secas.
O Monumento Natural do Rio São Francisco é uma Unidade de Conservação brasileira de proteção integral da natureza localizada na divisa entre os estados de Alagoas, da Bahia e de Sergipe, com território distribuído pelos municípios de Canindé de São Francisco, Delmiro Gouveia, Olho d’Água do Casado, Paulo Afonso e Piranhas.
O represamento de Sobradinho, em especial, transformou o pulso do rio em fluxo controlado, reduzindo a conectividade ecológica e afetando a reprodução de espécies migratórias. A jusante, a perda de nutrientes e sedimentos impacta diretamente os ambientes aquáticos e as comunidades ribeirinhas que dependem da pesca artesanal. A construção da barragem, inaugurada em 1979, marcou profundamente a paisagem e a vida das populações locais. Quatro cidades: Casa Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado ficaram submersas sob as águas do reservatório, dando origem a novas sedes erguidas em áreas próximas. Esse processo de deslocamento forçado inspirou obras artísticas e canções emblemáticas, como “Sobradinho”, de Sá & Guarabyra, que retrata o impacto humano e emocional das transformações impostas pelo progresso. O lago artificial resultante tornou-se um dos maiores espelhos d’água do país, modificando o microclima regional e a dinâmica socioeconômica do médio São Francisco.
Mapa do Reservatório Sobradinho. Fonte: Grupo de Geoprocessamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil
“O homem chega e já desfaz a natureza
Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco, lá pra cima da Bahia
Diz que dia, menos dia, vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia
Do beato que dizia que o sertão ia alagar
O sertão vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão
Vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão”
Capa do Disco e Trecho da canção Sobradinho, de Sá e Guarabyra (2001), que ilustra os conflitos socioambientais e os interesses divergentes envolvidos nos processos de decisão que resultam em transformações significativas no meio natural.
O Rio São Francisco é, ainda, um laboratório natural para o estudo das interações entre clima, solo, vegetação e hidrologia no semiárido. Pesquisas recentes têm revelado como as flutuações do regime hidrológico influenciam a dinâmica dos ecossistemas da Caatinga, desde a fenologia¹ das plantas até o comportamento migratório de aves aquáticas. Há também crescente interesse no papel dos bioindicadores aquáticos, como macroinvertebrados bentônicos e cianobactérias, na avaliação da qualidade da água e na detecção precoce de impactos ambientais. Mas o Velho Chico é mais do que um objeto de pesquisa, ele é um símbolo cultural e espiritual profundamente enraizado na identidade brasileira. Para as populações ribeirinhas, o rio é fonte de alimento, transporte, crenças e histórias. Seu nome carrega o respeito ancestral por São Francisco de Assis, cuja imagem é frequentemente associada à fertilidade das águas. Festas fluviais, procissões e romarias expressam o vínculo entre o sagrado e o ecológico, entre o homem e o curso do rio que o sustenta.
Entre as expressões culturais marcantes associadas ao Rio São Francisco, destaca-se a carranca, escultura tradicionalmente fixada na proa das embarcações que singravam suas águas. Com traços fortes e expressões ameaçadoras, essas figuras esculpidas em madeira surgiram como amuletos destinados a afastar maus espíritos e proteger navegantes e pescadores das intempéries do rio. Hoje, a carranca transcende seu papel místico, tornando-se um símbolo da identidade ribeirinha e da luta em defesa do Velho Chico, presente em manifestações artísticas, festivais e ações socioambientais. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, por exemplo, promove a campanha permanente “Vire Carranca pelo Velho Chico”, que busca mobilizar a sociedade em prol da recuperação e conservação do rio.
A Carranca é uma escultura, normalmente de madeira, com forma humana ou animalesca e utilizada na proa das embarcações que navegam pelo Rio São Francisco. Fonte: Artes do Imaginário Brasileiro
Nas últimas décadas, o avanço da irrigação intensiva, especialmente para fruticultura de exportação, tem elevado a pressão sobre os recursos hídricos. A salinização dos solos e o uso indiscriminado de agrotóxicos comprometem a qualidade da água, repercutindo na saúde dos ecossistemas aquáticos. O manejo antrópico do rio, tem imposto um ritmo artificial às paisagens que dependem de sua variabilidade natural. O desafio contemporâneo não está apenas em preservar o volume de água, mas em compreender e restaurar os processos ecológicos que fazem do São Francisco um sistema vivo: o pulso hidrológico, as conexões entre margens e planícies de inundação, a sazonalidade das cheias e o fluxo de sedimentos.
Foto do Lago Reservatório de Itaparica, no Rio São Francisco, no leste do Brasil, tirada da Estação Espacial Internacional da NASA.
Ainda assim, em meio a esse cenário de desafios, emergem exemplos notáveis de resiliência ecológica e iniciativas de conservação. Diversas Unidades de Conservação, como a APA Serra do Ipanema e o Parque Nacional do Catimbau, mantêm conexões indiretas com o sistema do São Francisco, protegendo nascentes, afluentes e áreas de recarga. Projetos comunitários de reflorestamento das margens com espécies nativas, têm demonstrado resultados promissores na restauração das matas ciliares. A recomposição da vegetação ripária não apenas recupera a integridade ecológica do rio, como também reduz processos erosivos, aumenta a infiltração da água no solo e melhora a produtividade dos sistemas agrícolas vizinhos. Nesse contexto, o estudo do São Francisco deve ser visto não como um tema restrito à conservação, mas como um campo de investigação estratégica para compreender os mecanismos de coexistência entre biomas contrastantes e para o desenvolvimento de modelos sustentáveis de uso da água em ambientes brasileiros.
1- Fenologia é o estudo das fases do ciclo de vida das plantas, como germinação, floração e frutificação, e como eventos como clima, manejo e fatores ambientais influenciam o desenvolvimento vegetal.
Texto por Gustavo Gomes da Luz Pereira
Referências:
- ALBUQUERQUE, U. P.; RODRIGUES, M. T.; et al. Caatinga Revisited: Ecology and Conservation of an Ecosystem in Seasonally Dry Tropical Conditions. PLoS ONE / PMC, 2012.
- ANA – Agência Nacional de Águas. São Francisco. Brasília: ANA, [s.d.]. Disponível em: https://www.gov.br/ana/pt-br/sala-de-situacao/sao-francisco/sao-francisco-saiba-mais. Acesso em: 12 out. 2025.
- ANTONGIOVANNI, M.; et al. Chronic anthropogenic disturbance on Caatinga dry forest. Journal Name, ano, v., n., p. (2020).
- ARAÚJO, H. F. P. de; et al. Human disturbance is the major driver of vegetation degradation in the Caatinga. Scientific Reports, 2023.
- FERNANDES, M. F.; CARDOSO, D.; PENNINGTON, R. T.; QUEIROZ, L. P. The origins and historical assembly of the Brazilian Caatinga seasonally dry tropical forests. Frontiers in Ecology and Evolution, v. 10, 2022.
- CARNELOSSI, E. A. G.; et al. Species richness and diel activity patterns of terrestrial mammals in a protected area of the Caatinga. Journal, ano 2025.
- “Pesquisa da Ufal mostra redução de 60% da vazão do Rio São Francisco.” Notícias UFAL, 2024. Disponível em: https://noticias.ufal.br/ufal/noticias/2024/8/pesquisa-da-ufal-mostra-reducao-de-60-da-vazao-do-rio-sao-francisco. Acesso em: 12 out. 2025.
- “São Francisco — Sistema de Acompanhamento de Recursos Hídricos (SAR).” ANA. Disponível em: https://www.ana.gov.br/sar/sin/b_sao-francisco. Acesso em: 12 out. 2025.
- “Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco — A Bacia.” Comitê da Bacia do São Francisco. Disponível em: https://cbhsaofrancisco.org.br/a-bacia/. Acesso em: 12 out. 2025.
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