Urutau e Bacurau, os Guardiões Noturnos da Natureza
Poucas aves evocam tanto mistério no imaginário popular quanto o urutau (Nyctibius spp.) e o bacurau (Caprimulgidae). De hábitos crepusculares e noturnos, ambas compartilham um repertório de comportamentos e adaptações que as tornam únicas. Embora pertençam a famílias distintas, as convergências ecológicas e etológicas¹ entre esses dois grupos são notáveis, resultadas de pressões evolutivas semelhantes associadas à camuflagem, ao hábito noturno e à predação por emboscada. Ao mesmo tempo, suas diferenças anatômicas, vocais e culturais conferem singularidade a cada um, transformando-os em símbolos ao mesmo tempo semelhantes e contrastantes nos diferentes ecossistemas brasileiros.

Bacurau-comum (Hydropsalis albicollis) macho adulto no substrato em Miranda, Mato Grosso do Sul. Fonte: WikiAves; Foto: Jorge Correia Neto.

Casal de urutau-comum (Nyctibius griseus) realizando cópula em Jundiaí, São Paulo. Fonte: WikiAves; Foto: Roberto Gallacci.
O urutau pertence à família Nyctibiidae, um grupo restrito à região Neotropical², composto por apenas sete espécies reconhecidas. No Brasil, ocorrem cinco delas: o urutau-ferrugem (Phyllaemulor bracteatus), único representante fora do gênero Nyctibius, com coloração avermelhada e hábitos discretos; o urutau-de-asa-branca (Nyctibius leucopterus), um urutau relativamente pequeno, que apresenta uma mancha branca na base das asas; o urutau-pardo (N. aethereus), associado a áreas de transição e ao Cerrado; o urutau-grande (N. grandis), o maior da família, de canto potente e presença marcante em florestas úmidas; e o urutau-comum (N. griseus), amplamente distribuído e reconhecido pelo canto melancólico que ecoa nas noites do interior. Entre elas, o N. grandis e o N. griseus apresentam as maiores áreas de ocorrência no território nacional.
A título de curiosidade, as duas espécies que não ocorrem no Brasil são o urutau-dos-andes (N. maculosus) e o urutau-jamaicano (N. jamaicensis), distribuídos respectivamente pela Cordilheira dos Andes e pelas regiões do Caribe e América Central.

Urutau-ferrugem (Phyllaemulor bracteatus), Fonte: WikiAves; Foto: Robson Czaban

Urutau-de-asa-branca (N. leucopterus), Fonte: WikiAves; Foto:Marco Guedes

Urutau-pardo (N. aethereus), Fonte: WikiAves; Foto: Mario Candeias

Urutau-grande (N. grandis), Fonte: WikiAves; Fotor: Celso De Castro

Urutau-comum (N. griseus), Fonte: WikiAves; Foto:Vital Teixeira
Já o bacurau pertence à família Caprimulgidae, de distribuição cosmopolita³ e composta por mais de 100 espécies distribuídas globalmente. o Brasil, ocorrem 27 delas, entre as quais se destaca o bacurau-comum (Hydropsalis albicollis).
Ambos possuem corpo compacto, plumagem críptica e grande capacidade de permanecer imóveis durante longos períodos, características associadas principalmente à camuflagem. O urutau apresenta cabeça relativamente grande, olhos proeminentes e uma postura característica: empoleira-se verticalmente sobre tocos ou galhos, com o bico pequeno e boca ampla. Sua coloração segue o padrão “mimetismo de casca”, com tons de cinza e marrom, além de riscas que reproduzem texturas dos troncos. O bacurau, por sua vez, possui corpo mais alongado e asas longas e pontiagudas, o que favorece um voo contínuo e ágil durante a caça. Muitas espécies de caprimulgídeos têm manchas claras nas asas ou cauda, visíveis em exibições de voo crepusculares. A ampla abertura oral é uma característica compartilhada por ambos, embora os bacuraus geralmente apresentam plumagens levemente menos semelhante à casca de árvore e postura mais horizontalizada quando empoleirados.


Fotografias representando as habilidades de mimetismo de ambos os grupos de aves. Fonte: WikiAves; Fotos: Luiz Bravo (Bacurau); Lucas Iabanji (Urutau)
Ambos são insetívoros, porém diferem na técnica de captura: o urutau é tipicamente um predador de emboscada, isto é, permanece imóvel aguardando insetos que passam próximos a ele e, ao detectar atividade, faz um voo curto e preciso para capturá-los. Essa estratégia exige economia de energia e percepção sensorial aguçada, sobretudo visão e detecção de movimentos. De outra forma, os bacuraus voam com mais frequência, patrulham áreas abertas, trilhas e bordas de vegetação em voo contínuo, capturando insetos em pleno ar (forrageio aéreo). Essa diferença funcional permite que esses grupos coexistam em sobreposição espacial, reduzindo a competição direta por alimento ao explorar micro-hábitats e janelas temporais diferentes no ambiente noturno.

Bacurau-chintã (Hydropsalis parvula) em voo. Fonte: WikiAves; Fotos por: Eduardo Vieira
Seus “cantos” são outro ponto de distinção marcante. Os nyctibídeos possuem vocalizações longas, lentas e melancólicas, sons que ecoam nas noites e inspiram mitos e narrativas populares. Essas vocalizações são geralmente simples, repetitivas e de baixa frequência, adequadas à comunicação a longa distância em ambientes abertos e arborizados. Em contrapartida, os caprimulgídeos apresentam um repertório mais variado, com chamados estridentes, repetições rítmicas e sons produzidos em voo, que funcionam como exibições territoriais e de acasalamento.
Registro dos cantos de Nyctibius griseus (urutau) e Nyctidromus albicollis (bacurau) em ambiente natural.
No aspecto reprodutivo, ambas as famílias apresentam estratégias semelhantes, caracterizadas por posturas reduzidas e ninhadas discretas. Os bacuraus costumam depositar um a dois ovos por ciclo, geralmente sobre o solo nu ou em pequenas depressões naturais, sem estrutura de ninho. Já os urutaus, ainda mais minimalistas, raramente colocam mais de um ovo por postura, preferindo superfícies elevadas, como cavidades ou topos de galhos, onde o ovo permanece exposto, mas perfeitamente camuflado pela coloração semelhante ao substrato. Os filhotes, em ambos os grupos, exibem plumagem críptica e comportamento de imobilidade, o que lhes confere proteção contra predadores nas primeiras semanas de vida. Apesar das semelhanças gerais, aspectos como tempo de incubação, a partilha dos cuidados parentais e as estratégias de defesa do ninho variam de acordo com a espécie, o ambiente e a disponibilidade de recursos. Esses parâmetros, ainda pouco documentados para populações da Caatinga, requerem estudos regionais que esclareçam as adaptações específicas de cada grupo ao ambiente semiárido.

Postura do Bacurau-comum no substrato, sem a confecção de estrutura de ninho. Fonte: WikiAves; Foto:Jacques Passamani

Ovo de urutau-comum no topo de um tronco. Fonte: WikiAves; Foto: Roberto Velame
Ecologicamente, ambos atuam como controladores das populações de insetos, contribuindo para o equilíbrio trófico⁴ tanto em remanescentes florestais quanto em mosaicos agrícolas. Além disso, sua sensibilidade a alterações de habitat, como desmatamento de margens, luzes artificiais e uso de agrotóxicos, os torna bons bioindicadores da qualidade ecológica do entorno, uma vez que declínios populacionais localizados dessas aves costumam anteceder alterações mais amplas nos ecossistemas. É importante notar que a influência direta das práticas antrópicas: a iluminação pública e rural, o uso de inseticidas e a perda de áreas de forragem noturna reduzem a disponibilidade de presas, afetando sobretudo espécies de voo aerodinâmico (como os bacuraus). Já a retirada de poleiros e a fragmentação arbórea comprometem espécies de emboscada como o urutau.
Embora amplamente distribuídos no país, muitos aspectos relacionados à migração e à sensibilidade a perturbações luminosas permanecem pouco conhecidos. Investimentos em inventários noturnos padronizados, monitoramento acústico remoto e estudos de dieta por análise estomacal ou de DNA fecal constituem medidas prioritárias para suprir essas lacunas. Políticas públicas que reduzam a poluição luminosa, limitem o uso de agrotóxicos e incentivem a manutenção de corredores arbóreos ripários também beneficiariam urutaus, bacuraus e toda a comunidade biológica noturna.
Suas características biológicas e comportamentais fazem com que ocupem lugar de destaque no folclore brasileiro: o canto do urutau é associado a presságios e assombrações por sua sonoridade prolongada e inspirou poemas, contos e superstições; já o bacurau, com seus chamados persistentes ao entardecer, tornou-se símbolo das tradições rurais, marcando o fim da jornada de trabalho, traço este que, junto à sonoridade do canto, no interior de Minas e Goiás, lhe rendeu um de seus nomes populares mais curiosos: “amanhã-eu-vou”. Essa carga simbólica, entre respeito e temor, pode tanto proteger quanto expor as aves, como abordado no nosso texto anterior sobre folclore.
Em algumas localidades, mitos levam à perseguição e, em outras, o valor cultural estimula a proteção comunitária. Projetos de educação ambiental que valorizam os cantos e as histórias locais podem ser eficazes na transformação da percepção: reconhecer urutaus e bacuraus como “guardas” do ambiente noturno e aliados no controle de pragas, facilita a aceitação de medidas conservacionistas, reduz perseguições e estimula práticas amigáveis, como a redução do uso de inseticidas e preservação de árvores.

Xilogravura Urutau: mãe-da-lua, exposta na mostra de Processos de Xilogravura no Museu de Arte Moderna da Bahia – 2024. Por Layla Matos

Xilogravura “Bacurau-do-rabo-branco” retratando a ave brasileira em extinção. Tamanho A4, em papel Renauld 180g creme – 2021. Autor: Vitor Pedroso
A presença dessas aves consolidam-se também no imaginário cultural brasileiro. O bacurau, por exemplo, é figura recorrente em letras de forró e xote tradicionais, representando o sertanejo vigilante que “dorme pouco e vigia muito”, uma alusão à sua natureza noturna. Já o urutau, também conhecido como mãe-da-lua, surge na poesia e na prosa regionalista como símbolo de solidão e mistério. Manoel de Barros o menciona em seus versos sobre o Pantanal, associando o canto melancólico da ave ao isolamento e à introspecção humana; enquanto João Guimarães Rosa, em Campo Geral (1956), descreve a mãe-da-lua como uma “ave de assombro”, situada entre o real e o lendário, reforçando o elo entre natureza e transcendência. Assim, esses animais noturnos tornam-se profundamente ligados à simbologia da noite e da contemplação.
Dessa forma, tanto o urutau quanto o bacurau exemplificam como a avifauna brasileira é intrinsecamente conectada aos aspectos culturais e ecológicos dos biomas nacionais. Suas adaptações e estratégias de sobrevivência não apenas reforçam a resiliência dessas aves, mas também colocam em foco a importância de um olhar integrado e multidisciplinar para a conservação, pois, além de desempenharem papéis ecológicos cruciais no controle de insetos, essas aves possuem um valor cultural profundo, refletido nas lendas, músicas e poesias que permeiam as obras brasileiras. Portanto, a proteção desses animais vai além de seu habitat natural; ela precisa envolver o fortalecimento de laços entre a ciência natural, a cultura e a comunidade, criando uma base sólida para práticas de conservação que respeitem tanto o ecossistema quanto as tradições locais.
- Glossário:
1- Etológico é um adjetivo que se refere a tudo o que é relativo à etologia, a ciência que estuda o comportamento dos animais em seu ambiente natural. A etologia analisa como os animais interagem entre si e com o meio, investigando fatores como instintos, aprendizado, sociabilidade e evolução.
2- Neotropical refere-se à região biogeográfica que engloba a América Central (do sul do México até a América do Sul) e inclui ilhas do Caribe e o sul da Flórida.
3- Distribuição cosmopolita é o termo para o alcance de um táxon, ou seja um grupo de animais, que se estende por todo ou a maior parte do mundo.
4- Equilíbrio trófico refere-se à manutenção da estabilidade de um ecossistema através do fluxo de energia e matéria entre os níveis de uma teia alimentar, onde cada espécie desempenha seu papel.
Texto por Gustavo Gomes da Luz Pereira
Referências:
- MENDONÇA, L. G. A.; BLAMIRES, D.; TUBELIS, D. P. “Nidificação do Urutau, Nyctibius griseus (Gmelin, 1789) (Aves: Nyctibiidae) em um ambiente urbano no Cerrado central”. Lundiana: International Journal of Biodiversity, v. 10, n. 1, p. 77-79, 2011. DOI:10.35699/2675-5327.2009.23829.
- CARVALHO, A. C. A. “Probabilidades de detecção e de ocupação de Nyctibius griseus (Aves: Nyctibiidae) sugerem inadequação de métodos de censos.” Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Ciências Biológicas) — Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Botucatu, 2024.
- “Caprimulgidae | WikiAves – A Enciclopédia das Aves do Brasil”. Disponível em: https://www.wikiaves.com.br/wiki/caprimulgidae. Acesso em: 21 de out. 2025. WikiAves
- “Nyctidromus | WikiAves – A Enciclopédia das Aves do Brasil”. Disponível em: https://www.wikiaves.com.br/wiki/nyctidromus. Acesso em: 21 de out. 2025. WikiAves
- MOURA, A. S. de et al. “Aves de hábitos noturnos e crepusculares de áreas com grande biodiversidade no sul de Minas Gerais”. Atualidades Ornitológicas, Ivaiporã, n. 215, p. 67-73, mai./jun. 2020.
- HERNANDES, F. A. “The feather mites of nightjars (Aves: Caprimulgidae), with descriptions of two new species from Brazil (Acari: Xolalgidae, Gabuciniidae)”. Folia Parasitologica, v. 61, n. 2, p. 173-181, 2014.
- “BACURAUS do BRASIL: Cantos e comportamentos das espécies brasileiras | Caprimulgidae”. Mundo Animal BH, 8 jun. 2023. Disponível em: https://mundoanimalbh.com.br/bacuraus-do-brasil-cantos-e-comportamentos-das-especies-brasileiras-caprimulgidae/. Acesso em 21 de out. 2025.
- “URUTAU – Uma ave aterrorizante ou impressionante?”. Blog de Marina Xavier da Silva, [s.d.]. Disponível em: https://marinaxavierdasilva.com.br/urutau/. Acesso em: 21 de out. 2025.
- MOURA, A. S. de; … Atualidades Ornitológicas, Ivaiporã, n. 215, p. 67-73, mai./jun. 2020.
- “Conheça o urutau-comum, uma ave peculiar”. Meus Animais, 12 out. 2023. Disponível em: https://meusanimais.com.br/conheca-urutau-comum-ave-peculiar/. Acesso em: 21 de out. 2025.
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