Noite Seca, Olhos Brilhantes: Fauna noturna da Caatinga
A Caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, caracterizado por clima semiárido, temperaturas elevadas e chuvas irregulares, configurando-se como um dos ecossistemas mais desafiadores da América do Sul. Diante dessas condições adversas, algumas espécies da fauna catingueira desenvolveram estratégias de sobrevivência específicas, entre as quais se destaca o comportamento noturno. Essa adaptação contribui para a redução da perda hídrica, evita o estresse térmico e pode aumentar o sucesso na busca por alimento e na evasão de predadores. A atividade noturna representa uma importante adaptação ecológica entre diversos grupos de animais, principalmente mamíferos, aves e répteis além dos invertebrados, sendo também observada no bioma Caatinga.
Fotografia da noite no bioma da Caatinga, no Parque Nacional Serra da Capivara, em 15 de Agosto de 2022. Foto: Larissa Nogueira de Miranda.
Entre as aves, destacam-se espécies como o caboré-de-orelha (Megascops choliba) e o bacurau-tesoura (Hydropsalis torquata), que apresentam voo silencioso e olhos adaptados à baixa luminosidade, características essenciais para a caça noturna de artrópodes. O silêncio e a camuflagem são recursos que essas aves utilizam tanto na predação quanto na defesa contra ameaças. No grupo dos invertebrados, a diversidade de artrópodes noturnos é expressiva, incluindo escorpiões e aranhas, muitos dos quais possuem importância médica e ecológica. O escorpião-amarelo (Tityus stigmurus), por exemplo, é uma espécie de hábitos noturnos que é frequentemente registrada em ambientes urbanos e rurais da caatinga.
Registros fotográficos de duas espécies de aves noturnas: em cima, o bacurau-tesoura (Hydropsalis torquata), espécie de hábitos crepusculares e noturnos, reconhecida por sua cauda longa e bifurcada nos machos; em baixo, o caboré-de-orelha (Megascops choliba), uma pequena coruja de ampla distribuição no Brasil. Foto: Guto Magalhães
Entre os mamíferos noturnos do bioma, destacam-se o gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris) e o mão-pelada (Procyon cancrivorus). O gambá é conhecido por seu comportamento nômade e elevada capacidade de se adaptar a diferentes ambientes e situações, sendo frequentemente encontrado inclusive em ambientes urbanos. O mão-pelada, por sua vez, possui dieta generalista e atua como importante dispersor de sementes, com atividade predominantemente noturna.
Pegadas de mão-pelada (P. cancrivorus). Foto: Carolina Franco Esteves.
Outro representante noturno do bioma é o morcego-vampiro (Desmodus rotundus), uma espécie hematófaga amplamente distribuída na América Latina. Com hábitos noturnos estritos, esse quiróptero deixa seus abrigos ao entardecer para alimentar-se exclusivamente de sangue de mamíferos, incluindo animais domésticos. Embora frequentemente associado a riscos sanitários, como a transmissão do vírus da raiva, o morcego-vampiro também desempenha papel ecológico relevante, atuando no controle populacional de suas presas e compondo redes alimentares complexas. Além do D.rotundus, outro morcego, recentemente descrito no bioma, o Xeronycteris vieirai também apresenta hábitos noturnos e é responsável pela polinização de plantas características da caatinga.
Xeronycteris vieirai esticando a língua em seu abrigo subterrâneo em Lajes, Rio Grande do Norte, Brasil. Foto: Juan Carlos Vargas.
A onça-parda (Puma concolor) também possui comportamento noturno, embora apresente grande flexibilidade em seu padrão de atividade em diferentes biomas, estudos indicam que, em regiões onde coexiste com a onça-pintada (Panthera onca), sua atividade tende a se intensificar durante a noite como forma de evitar competição direta por presas e território. A onça-pintada tende a ser mais ativa em períodos crepusculares, favorecendo uma partição temporal de nicho entre os dois grandes predadores. Essa segregação de horários é uma estratégia ecológica para reduzir conflitos e aumentar a eficiência de caça em ambientes com oferta limitada de recursos.
Comportamento noturno da Onça-parda (Puma concolor), capturada por uma câmera trap. Fotos: Arquivo Programa Amigos da Onça
Portanto, o comportamento noturno vai além de uma simples preferência temporal: trata-se de uma estratégia evolutiva complexa, moldada por pressões ambientais e pela necessidade de eficiência energética. Contudo, a intensificação da perda e fragmentação de habitat que levam à desertificação, aliada à expansão urbana, impõem desafios crescentes à conservação dessas espécies. Compreender a importância ecológica dos hábitos noturnos na Caatinga e promover ações integradas de monitoramento e conservação é fundamental para garantir a resiliência desse ecossistema frente às mudanças climáticas e à perda de biodiversidade. Esses e outros “estrategistas da noite” da Caatinga são peças-chave na manutenção das cadeias tróficas, no controle biológico e na sustentação dos processos ecológicos de um dos biomas mais singulares do planeta.
Texto por: Gustavo Gomes da Luz Pereira
REFERÊNCIAS:
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