Pequenos gigantes da manutenção da biodiversidade
Entre os protagonistas silenciosos que sustentam os ecossistemas, os insetos, muitas vezes ignorados, ocupam um papel central. Mais do que simples habitantes da Caatinga, eles são verdadeiras engrenagens ecológicas, responsáveis pela polinização, decomposição, controle biológico e manutenção da vida. Nas últimas décadas, estudos sobre os insetos da Caatinga como FERREIRA et al. (2018) e GIANNINI et al. (2021), revelaram uma fauna diversa e funcionalmente importante, com adaptações impressionantes às condições climáticas diversas.
Erythrodiplax fusca exibindo coloração avermelhada vibrante durante o período reprodutivo. Fonte: Arquivo PAO
As abelhas, por exemplo, desempenham um papel essencial nos ecossistemas. Estima-se que, contando nativas e exóticas, existam mais de 180 espécies de abelhas só na região semiárida do Nordeste brasileiro. Em território nacional, esse número ultrapassa 3.000 espécies. Entre elas, destacam-se os gêneros Melipona, Trigona, Plebeia e Frieseomelitta, que fazem parte da “tribo” das abelhas sem ferrão (meliponíneos). Estes engenhosos insetos estão profundamente integrados aos ecossistemas vegetais em todo o mundo, não apenas na Caatinga ou no Brasil, apresentando comportamentos e estratégias ecológicas específicas, como camuflagem, organização social complexa, pausa do desenvolvimento em resposta a condições diversas, entre outras. Além de produzirem mel, sãoagentes polinizadores, contribuindo diretamente para a reprodução de inúmeras espécies vegetais de grande relevância ecológica.
Enxame de abelhas em galho de árvore na Caatinga. Foto: Claudia Martins
No contexto da Caatinga, destacam-se plantas como a catingueira, o angico, o umbuzeiro e o mandacaru, cuja perpetuação depende, em grande parte, da atividade polinizadora desses insetos. Sem a ação das abelhas, muitas dessas plantas não conseguiriam se reproduzir, o que afetaria diretamente a fauna que delas depende. Frutos, sementes e até mesmo a regeneração de áreas degradadas estão intimamente ligados ao voo incansável dos apídeos (grupo que engloba as abelhas). Além disso, a diversidade de espécies e, consequentemente, diferentes características das abelhas garantem a estabilidade dos sistemas de polinização mesmo em períodos de seca prolongada, já que diferentes espécies atuam em diferentes horários e tipos de plantas, o que garante uma cobertura ampla do serviço ecológico.
Espécies silvestres da Caatinga visitadas e polinizadas pela abelha jandaíra-do-nordeste (Melipona subnitida): A – Guardião (Cayaponia sp.); B – Salsa-brava (Ipomoea asarifolia); C – Malva-branca (Sida cordifolia); D – Jurema-preta (Mimosa tenuiflora). Fonte: Eleutério et al. (2024)
Mesmo sendo importante, as abelhas não estão sozinhas nesse papel. Outros insetos, como borboletas, mariposas, besouros e vespas também participam da polinização ou interagem com a flora e a fauna da região de formas surpreendentes. As vespas, por exemplo, atuam como predadoras de outras pragas, controlando naturalmente populações de lagartas e outros invertebrados. Os besouros têm papel essencial na decomposição da matéria orgânica, ciclando nutrientes e contribuindo para a fertilidade do solo. Formigas, como a formiga-gigante-da-caatinga (Dinoponera quadriceps), participam tanto da aeração do solo quanto da dispersão de sementes, além de formarem complexas interações com fungos e outras espécies de insetos.
Besouro do gênero Dichotomius spp. Fotografia: Roland Brack. Fonte: Acervo PAO
Muitos desses insetos apresentam comportamentos bastante peculiares. Algumas espécies de abelhas, marimbondos e vespas constroem seus ninhos em ocos de árvores, fendas em rochas ou, em certos casos, chegam a ocupar ninhos de outras espécies. Um exemplo fascinante é a Traumatomutilla bifurca, popularmente chamada de formiga-feiticeira. Apesar do nome, trata-se de uma vespa da família Mutillidae, conhecida por seu comportamento parasitóide, desenvolvendo-se a partir de ninhos de abelhas e vespas de outras espécies, essas interações ajudam a controlar naturalmente populações de outros himenópteros (ordem de insetos que compreende os grupos de vespas, abelhas formigas, entre outros), equilibrando o ecossistema. Mas para além disso, essa espécie possui características e aparência extraordinárias: a fêmea possui uma coloração preta extremamente intensa, considerada uma das mais escuras registradas na natureza (veja figura abaixo). Seu corpo é capaz de absorver até 99,5% da luz visível, um fenômeno conhecido como “preto absoluto”, que elimina quase todos os reflexos e confere um aspecto visual aveludado. Acredita-se que essa característica tenha funções adaptativas importantes, como camuflagem contra predadores, proteção contra radiação solar e auxílio na termorregulação em ambientes áridos.
Fêmea da formiga-feiticeira (Traumatomutilla bifurca), vespa conhecida por sua coloração preta intensa e comportamento parasitóide. Fonte: Revista Pesquisa Fapesp, disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/as-vespas-ultrapretas-da-caatinga/
Já as borboletas da Caatinga exibem uma variedade de estratégias de camuflagem, refletindo a engenhosidade da evolução frente aos desafios ambientais. Um exemplo marcante é a Hamadryas februa, popularmente conhecida como Estaladeira-cinzenta. Suas asas apresentam tons terrosos e padrões que imitam com perfeição a aparência de folhas secas e cascas de árvores, permitindo que se confundam com o solo ou troncos enquanto repousam. Essa capacidade de mimetismo atua como um mecanismo de defesa contra predadores visuais, como aves e lagartos.
Borboleta da espécie Hamadryas februa registrada em Aldeia, Camaragibe, Pernambuco. Fonte: Portal de Zoologia de Pernambuco, disponível em: https://www.portal.zoo.bio.br/
A relação entre insetos e comunidades humanas também é antiga: sertanejos utilizam o mel das abelhas nativas, não só como alimento, mas também como remédio tradicional. Indígenas e populações rurais reconhecem e nomeiam diferentes tipos de abelha pelo sabor do mel, agressividade e pelos locais onde constroem seus ninhos, caracterizando essa sabedoria popular como um verdadeiro patrimônio cultural e ecológico. Espécies como a Melipona subnitida são chamadas de jandaíra, enquanto a Melipona seminigra é conhecida como uruçu-boca-de-renda. Há ainda nomes como: lambe-olho, arapuá, caga-fogo e cabeça-de-ferro, que descrevem aspectos visuais ou comportamentais das espécies.
Apesar de sua relevância ecológica, os insetos da Caatinga vêm sendo pressionados por uma série de ameaças já bem conhecidas no contexto da perda de biodiversidade: o desmatamento, a expansão agropecuária, o uso indiscriminado de agrotóxicos e a introdução de espécies exóticas que comprometem diretamente sua sobrevivência e consequentemente os importantes serviços ecológicos que esses organismos prestam. A degradação dos habitats leva à escassez de flores, reduz locais adequados para nidificação (ato de uma espécie construir seu ninho) e fragmenta o ambiente natural. Já os agrotóxicos, mesmo em concentrações baixas, podem ser tóxicos e impactar severamente a saúde e o comportamento destes frágeis animais. Para além, mudanças climáticas provocadas por ações antrópicas vêm alterando regimes de chuvas e temperatura, influenciando negativamente os ciclos reprodutivos e a disponibilidade de recursos alimentares essenciais para os pequenos insetos.
Exemplares de Episcada vitrea repousando sobre a vegetação na Caatinga. Fonte: Arquivo PAO
Nesse cenário, a educação ambiental surge como uma aliada para a conservação dos insetos da Caatinga. Conhecê-los é o primeiro passo para protegê-los, pois compreender o papel de abelhas, vespas, borboletas e outros insetos permite sensibilizar comunidades e estimular práticas sustentáveis, como a meliponicultura e o manejo ecológico do solo e da água. Projetos voltados às escolas do semiárido podem usar esses insetos como ponto de partida para discutir biodiversidade, serviços ecossistêmicos e os efeitos das mudanças climáticas.
Atividades como trilhas interpretativas, oficinas de construção de ninhos e produção comunitária de mel são ferramentas valiosas. Além de promoverem a educação ambiental, essas práticas ajudam a desconstruir o medo comum em relação às abelhas, muitas vezes vistas apenas como animais que picam. Ao destacar as espécies nativas sem ferrão, que são fundamentais para a polinização da Caatinga, é possível sensibilizar a população sobre sua importância ecológica e incentivar sua conservação.
A instalação de “hotéis de insetos” também se mostra uma estratégia eficaz, especialmente para abrigar polinizadores solitários, como algumas abelhas e vespas nativas, contribuindo para o equilíbrio dos ecossistemas locais. Integrar os saberes tradicionais ao conhecimento científico fortalece o diálogo entre gerações e reforça a identidade cultural sertaneja.
“Hotel” de insetos solitários. Fonte: https://br.freepik.com/
Ao mesmo tempo, é fundamental que políticas públicas reconheçam a importância dos invertebrados e incorporem sua proteção como prioridade ambiental. A criação de áreas protegidas, corredores ecológicos e incentivos à agricultura de base ecológica são medidas urgentes. Também é indispensável o apoio à pesquisa científica sobre a entomofauna da Caatinga, ainda pouco conhecida em sua diversidade e complexidade. Afinal, proteger esses animais é proteger a nós mesmos, pois são eles que mantêm solos vivos, polinizam nossos alimentos e preenchem o sertão com cor, som e movimento.
Que saibamos olhar para o chão, as flores e os troncos ocos com mais atenção, pois ali vivem seres indispensáveis mas por vezes desconhecidos e ignorados, cujas histórias merecem continuar zumbindo e florescendo no coração do Brasil. Toda vida, por mais diminuta em tamanho que seja, importa e rege a vida do planeta na sua teia de infinitas conexões.
Texto por: Gustavo Gomes da Luz Pereira
Referências:
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- ELEUTÉRIO, P. et al. Criação e multiplicação de colônias da abelha jandaíra (Melipona subnitida) para uso na polinização agrícola e outros fins. In: FREITAS, B. M.; BEZERRA, A. D. M. (orgs.). Rearing, multiplication, and management of native bees for agricultural pollination in Brazil. Fortaleza: Laboratório de Abelhas, Universidade Federal do Ceará, 2024. p. 203–228.
- EMBRAPA. Apicultura no semiárido: práticas e potencialidades. Petrolina: Embrapa Semiárido, [s.d.]. Disponível em: https://www.embrapa.br/semiarido. Acesso em: 22 jul. 2025.
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