Serpentes da Caatinga: Sob o Sol e as Escamas

!!!Aviso ao leitor: Este texto contém descrições e imagens relacionadas a serpentes. Caso você possua ofidiofobia (medo intenso de cobras), a leitura pode causar desconforto!!!

No ambiente singular do semiárido nordestino, marcado por contrastes sazonais entre estiagens prolongadas e curtos períodos de chuva, as serpentes desempenham papel marcante no equilíbrio ecológico, regulando populações de pequenos mamíferos, aves, anfíbios e outros répteis. Com mais de 100 espécies registradas, incluindo representantes de diferentes famílias, a herpetofauna¹ ofídica² da Caatinga ilustra tanto a diversidade biológica quanto as complexas interações ecológicas que sustentam a vida nesse ecossistema.

1- Herpetofauna: é o termo que se refere ao conjunto de répteis e anfíbios de uma determinada região, cujo nome vem da palavra grega “herpeton”, que significa “aquele que rasteja”.

2 – Ofídica: relativo a ou próprio de serpentes.

Entre o grupo dos boídeos, caracterizados por serem serpentes não peçonhentas que utilizam a constrição como estratégia de captura e predação, temos a  jiboia (Boa constrictor), amplamente distribuída pelo bioma e por todo o Brasil, a qual exerce função de predadora de médio porte, alimentando-se de roedores, aves e lagartos. Outro representante é a salamanta-da-caatinga (Epicrates assisi), endêmica do Nordeste, que habita ambientes rochosos e caatingas arbustivas, sendo considerada importante bioindicadora da integridade ambiental. Ambas as espécies sofrem forte pressão antrópica devido à perda de habitat e à perseguição por parte de comunidades humanas, motivada por crenças populares ou medo infundado dos animais. 

 

A  jiboia (Boa constrictor) é uma serpente constritora não venenosa encontrada em praticamente  todas as regiões América Central e do Sul. São excelentes nadadoras, mas preferem ficar em terra firme, vivendo principalmente em troncos ocos e tocas abandonadas de mamíferos. Foto: Cláudia Campos

No grupo das serpentes peçonhentas, a jararaca-da-seca (Bothrops erythromelas), representa a principal espécie responsável por acidentes ofídicos na região. Adaptadas ao ambiente árido, apresentam hábitos noturnos e dieta generalista, composta por pequenos mamíferos e anfíbios. O veneno desempenha função primordial não apenas na predação, mas também como defesa contra predadores. Outra espécie relevante é a cascavel (Crotalus durissus), que ocupa áreas abertas e pedregosas. Além de seu papel ecológico, a cascavel possui importância biomédica, pois seu veneno é fonte de moléculas bioativas estudadas para o desenvolvimento de fármacos, colas cirúrgicas entre outros.

A jararaca-da-seca (Bothrops erythromelas) possui veneno que apresenta efeitos hemorrágicos e fibrinogenolíticos. O verão é o período preferencial para sua reprodução e de maior número de acidentes ofídicos com a espécie. As fêmeas, produzem em média 4 filhotes por ninhada, podendo este número variar. Foto: Vinicius S. Domingues (Biodiversity4all)

Uma das principais características da cascavel (Crotalus durissus) é a presença de um guizo na ponta da cauda. O guizo é formado por vários anéis, que correspondem ao número de mudas de pele que a serpente realiza durante a sua vida. A cada muda, que ocorre geralmente a cada 6 ou 12 meses, dependendo da dieta, um novo anel é formado. Além disso, como em outras espécies da família Viperidae, as cascavéis possuem orifícios visíveis, entre os olhos e as narinas, conhecidos como fosseta loreal. Fonte: Portal de Zoologia de Pernambuco

Extração controlada de veneno de cascavel (Crotalus durissus), procedimento essencial para pesquisas biomédicas e a produção de soro antiofídico no Brasil. Foto: Felipe Rau/Estadão.

A diversidade ofídica da Caatinga inclui ainda diversas espécies não peçonhentas que, embora frequentemente confundidas com espécies perigosas, são inofensivas ao ser humano e fundamentais para a manutenção do equilíbrio ecológico, como a caninana (Spilotes pullatus) e a corre-campo (Philodryas nattereri), embora esta última apresente “saliva opistóglifa”, ou seja,  veneno de baixa relevância médica humana mas que contribui significativamente para o controle de lagartos e pequenos vertebrados durante a predação por esta espécie.

 

Philodryas nattereri é o nome científico da serpente também designada popularmente como Corre-campo, ocorrendo amplamente pelo nordeste e centro-oeste brasileiro. É uma serpente opistóglifa, podendo atingir um comprimento de 160 cm, de corpo amarelo-bronzeado com quatro linhas laterais escuras Foto: Ruben D. Layme (Biodiversity4all).

Um destaque especial nas serpentes nordestinas é a muçurana (Clelia clelia), conhecida por seu hábito ofiófago, ou seja, por se alimentar de outras serpentes, incluindo espécies peçonhentas como jararacas e cascavéis. Essa característica confere-lhe importância singular, atuando como reguladora natural das populações de serpentes potencialmente perigosas. Embora seja inofensiva e incapaz de causar envenenamento em pessoas, a muçurana é alvo de perseguição injustificada, resultado da dificuldade de diferenciação em relação a espécies peçonhentas.

Muçuranas têm um comprimento total médio, incluindo cauda, de cerca de um metro e meio, mas podem crescer até cerca de 2,5 m. Quando jovem, sua cor dorsal é rosada, que se torna azul-chumbo quando adulta. Uma vez que a muçurana está próxima o suficiente de sua presa, ela lança um ataque rápido e preciso, geralmente mirando na cabeça da outra cobra. Fonte: Sid  Castro – r7.com

Além disso, existe uma crença popular de que a muçurana “roubaria” o leite do gado ou até mesmo de mulheres adormecidas. Essa narrativa, sem fundamento científico, reflete a tentativa de explicar a presença frequente dessa serpente em ambientes rurais, já que ela é atraída por roedores. Estudos de anatomo-fisiologia das serpentes mostram que a muçurana não possui aparato bucal para realizar sucção nem mesmo capacidade digestória para absorver de forma adequada leite, sendo um animal estritamente carnívoro e preferencialmente ofiófago. Apesar disso, este mito contribuiu historicamente para a perseguição da espécie, reforçando a necessidade de ações de educação ambiental que desmistificam crenças errôneas e promovam a valorização de seu papel ecológico. Sua preservação é, portanto, estratégica não apenas para o equilíbrio ecológico, mas também para a mitigação indireta do risco de acidentes ofídicos.

Ilustração do mito da muçurana: enquanto a mãe dorme, a serpente se aproxima para sugar o leite. Fonte: SouEnfermagem

Assim, as serpentes da Caatinga desempenham múltiplas funções ecológicas, atuando como predadores, presas e até como dispersoras indiretas de nutrientes por meio da ciclagem trófica. Sua eliminação arbitrária pode resultar em desequilíbrios graves, como o aumento descontrolado de populacionais, especialmente de roedores, que, por sua vez, impactam negativamente a agricultura e a saúde pública por meio da disseminação de zoonoses. 

Jararaca-comum (Bothrops jararaca) predando uma ratazana (Rattus norvegicus) em ambiente peri-urbano em Santa Catarina. Foto: Ignácio Cuello (g1.com) 

A herpetofauna, na Caatinga e no Brasil, enfrenta sérias ameaças, como a fragmentação de habitats, o desmatamento, a caça e principalmente o atropelamento em rodovias. Projetos de conservação têm buscado associar educação ambiental à valorização da fauna local, desmistificando crenças populares e ressaltando a importância das serpentes como aliadas da agricultura. Campanhas educativas mostram que, ao contrário do imaginário coletivo que as associa ao perigo, muitas espécies não oferecem riscos e são essenciais para a manutenção da biodiversidade. A diversidade de serpentes da Caatinga reflete a resiliência de um bioma adaptado, desde as imponentes jiboias até as discretas muçuranas, assim cada espécie desempenha seu papel. 

Compreender e respeitar essa diversidade não apenas fortalece as bases científicas para a conservação e, nesse sentido, a preservação da herpetofauna ofídica da Caatinga deve ser entendida como parte integrante da proteção do bioma e da promoção de uma convivência mais harmoniosa entre o ser humano e a natureza.

Texto por Gustavo Gomes da Luz Pereira

Referências:

ALBUQUERQUE, U. P.; RODRIGUES, M. T.; et al. Caatinga Revisited: Ecology and Conservation of an Ecosystem in Seasonally Dry Tropical Conditions. PLoS ONE / PMC, 2012.

CALIXTO, P. O.; MORATO, S. A. A. Herpetofauna recorded by a fauna rescue program in a Caatinga area of João Câmara, Rio Grande do Norte, Brazil. Check List, v. 13, n. 5, p. 647-657, 2017.

CUBAS, Z. S.; SILVA, J. C. R.; CATÃO-DIAS, J. L. (Eds.). Tratado de Animais Selvagens – Medicina Veterinária. 2. ed. São Paulo: Roca, 2014.

GUEDES, T. B.; MARTINS, M.; et al. Diversity, natural history, and geographic distribution of snakes in the Caatinga, Northeastern Brazil. Zootaxa, v. 3863, n. 1, p. 1-136, 2014.

INSTITUTO BUTANTAN. Uma cobra que se alimenta de cobras e é imune aos seus venenos: conheça a muçurana. São Paulo, 31 out. 2022. Disponível em: https://butantan.gov.br/bubutantan/uma-cobra-que-se-alimenta-de-cobras-e-e-imune-aos-seus-venenos-conheca-a-mucurana. Acesso em: 27/09/2025.

SILVERMAN, S. Diagnostic Imaging. In: MADER, D. R. Reptile Medicine and Surgery. 3. ed. Saunders Elsevier, 2006. p. 471-489.

SOUENFERMAGEM. A Lenda da Cobra Preta que Mama, tem fundamento? s.d. Disponível em: https://www.souenfermagem.com.br/noticias/a-lenda-da-cobra-preta-que-mama-tem-fundamento/. Acesso em: 27/09/2025.

 

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