A perda silenciosa da vida silvestre nas águas que sustentam o agronegócio
O avanço da fronteira agrícola, bem como os efeitos da intensificação do desmatamento e da seca no Brasil, problemas que persistem há séculos no país, vêm impactando profundamente a vida silvestre e trazem à tona uma realidade ainda pouco documentada: a perda de animais silvestres, afogados em canais de irrigação que abastecem grandes monoculturas no Oeste Baiano.
Para muitas espécies que caem acidentalmente, tentam atravessar os canais ou, na busca por água, se deparam com esses atraentes “rios artificiais”, o alívio da sede e a busca pela sobrevivência tem um preço: a própria vida.
Lobo-guará em canal de irrigação. Foto: Associação Onçafari/O Eco
O Oeste Baiano se destaca como um dos maiores polos do agronegócio no Brasil, sendo dominado por extensas plantações de grãos como soja, algodão e milho, culturas que dependem completamente da irrigação. A região, por ser caracterizada por um clima naturalmente seco, é marcada pela presença desses canais artificiais que garantem o abastecimento de água para as lavouras. Nessas localidades, a vegetação nativa é substituída por extensas monoculturas sustentadas pelos canais de irrigação, que são construídos ao redor das fazendas e podem ter até 20 quilômetros de extensão.
Animais afogados em canais de irrigação. Fotos: ICMBio, Relatório da Operação Inverno 2024/O Eco
Na Fazenda Alto Jaborandi, localizada na Bahia, no entorno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, um berçário de espécies nativas e ameaçadas, uma família de lobos-guarás foi encontrada morta nos canais de irrigação em 2023. As vítimas eram a mãe Nhorinhá, e seus dois filhotes juvenis, Formoso e Urucuia. Os animais só foram encontrados porque eram monitorados por colares pela associação Onçafari, que atua na pesquisa e conservação de espécies silvestres na região.
Urucaia, macho de lobo-guará encontrado morto em canal de irrigação da fazenda Alto Jaborandi em 2023. Foto: Onçafari/Repórter Brasil
Além disso, outros animais como tatu-peba, gato-palheiro, roedores e coruja já foram encontrados sem vida em canais de irrigação na região. Carcaças também foram identificadas na Fazenda Karitel, produtora de grãos, café, algodão e tabaco e vizinha da Fazenda Alto Jaborandi. E ainda, segundo fontes regionais, lotes de carcaças de animais selvagens são retirados semanalmente desses reservatórios.
A esquerda, carcaça da fêmea Nhorinhá removida da água e deixada ao lado do canal. À direita, o mesmo animal no Cerrado. Fotos: Associação Onçafari e Eduardo Fragoso/O Eco.
A estrutura inadequada dos canais reflete a negligência que compromete a conservação da vida silvestre. As margens dos canais, revestidas por plástico liso, dificultam a saída dos animais, que, ao tentarem escalar as paredes escorregadias, não conseguem e acabam morrendo. Quando cercas são instaladas, muitas vezes são precárias, baixas e frágeis, falhando em impedir que animais acessem os canais de irrigação
Cerca danificada no entorno dos canais na fazenda Alto Jaborandi. Foto:ICMBio/Repórter Brasil
Marcas de unhas nas lonas escorregadias mostram a tentativa falha dos animais em sair dos canais.Foto:Onçafari/Repórter Brasil
Rogério Cunha de Paula, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP), do ICMBio, revela que “se num curto prazo foram identificados tantos animais mortos, ainda estamos longe de saber a dimensão real do problema”.
De acordo com o relatório “DESMATAMENTO AUTORIZADO E APROPRIAÇÃO DA ÁGUA NO OESTE BAIANO: A DESTRUIÇÃO DO CERRADO E SEUS POVOS”, 98% da vazão de águas concedida pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA), entre setembro de 2007 a setembro de 2022, nas bacias hidrográficas do Oeste da Bahia, foi destinada a atividades de irrigação. Esses dados foram publicados em 2022 pela ONG Instituto Mãos da Terra (Imaterra) e pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com apoio da WWF-Brasil e do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
Outorgas de Uso de Recursos Hídricos concedidas pelo INEMA, entre setembro de 2007 a setembro de 2022, no Oeste do Estado da Bahia, por atividade.
Dessa forma, um sistema de irrigação abundante, mas mal planejado, somado ao avanço desordenado da produção agrícola tem criado um cenário fatal para a vida selvagem. Sem medidas como o mapeamento dos impactos da irrigação sobre a fauna, a regularização das infraestrutura desses sistemas e mudanças na legislação ambiental, os canais de irrigação seguirão abastecendo lavouras enquanto também acumulam as vítimas de um modelo que ignora a conservação. Se essas perdas silenciosas não cessarem, a vida silvestre seguirá desaparecendo nessas águas, sendo esquecida e negligenciada em canais potencialmente mortais.
Texto por: Larissa Terra da Silva Guerra
REFERÊNCIAS
O ECO. Lobos-guará e outros animais morrem afogados em canais de irrigação. O ECO, 25 nov. 2022. Disponível em: https://oeco.org.br/reportagens/lobos-guara-e-outros-animais-morrem-afogados-em-canais-de-irrigacao/. Acesso em: 11 mar. 2025.
REPÓRTER BRASIL. Lobos-guará se afogam em irrigação de fazenda financiada pelo BNDES e Rabobank. Repórter Brasil, 4 out. 2024. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2024/10/lobos-guara-afogam-irrigacao-fazenda-bndes-rabobank-banco-nordeste/. Acesso em: 10 mar. 2025.
WORLD ANIMAL PROTECTION. Massacre invisível: série retrata impacto oculto da irrigação na vida selvagem. World Animal Protection, 13 mar. 2023. Disponível em: https://www.worldanimalprotection.org.br/mais-recente/noticias/massacre-invisivel-serie-retrata-impacto-oculto-da-irrigacao-na-vida-selvagem/. Acesso em: 10 mar. 2025.
O ECO. Agonizar até morrer tentando escapar de canais de irrigação. O ECO, 26 nov. 2022. Disponível em: https://oeco.org.br/reportagens/agonizar-ate-morrer-tentando-escapar-de-canais-de-irrigacao/. Acesso em: 10 mar. 2025