Desafios da convivência entre humanos e onças na Caatinga
No mês passado, a mídia noticiou dois supostos casos de ataque de onça-parda a humanos no sertão de Pernambuco. E embora os órgãos ambientais de Pernambuco e do governo federal não tenham confirmado que o ataque foi feito por onça-parda (leia mais), a cobertura intensa da imprensa instiga reflexões sobre a coexistência entre seres humanos e animais silvestres na Caatinga. Lamentamos este acontecimento e compreendemos as dificuldades enfrentadas pelos habitantes da região em seu cotidiano, especialmente na convivência com os predadores. Esse suposto incidente ressalta também a importância de compreendermos a condição do habitat desses animais e a necessidade de implementar medidas mitigadoras para minimizar os conflitos. Vamos entender o que pode ter influenciado esse acontecimento?
Onça-parda (Puma concolor). Foto: Arquivo Programa Amigos da Onça
Primeiramente, é importante destacar que os ataques de onças a humanos são muito incomuns, ocorrem geralmente quando esses felinos se sentem acuados e/ou ameaçados. Esses felinos ocupam o topo da cadeia alimentar e desempenham um papel vital nos ecossistemas, controlando populações de presas e contribuindo para a manutenção do equilíbrio dinâmico ambiental. Mesmo sendo predadoras, evitam o confronto com animais de grande porte – incluindo os humanos, pois têm como estratégia a economia de energia, então tendem a dar preferência a animais de pequeno e médio porte, que conseguem caçar com maior garantia de sucesso. A dieta da onça-parda, por exemplo, é basicamente composta por mamíferos de médio porte, como porcos-do-mato, veados e tatus.
A expansão das atividades humanas em áreas silvestres destroem o habitat natural das onças, levando-as a se aproximar das comunidades e desencadeando encontros indesejados, como o que caso noticiado no sertão de Pernambuco. Assim como, a caça às presas naturais das onças, que, apesar de ilegal é uma prática cultural comum no sertão, pode aumentar a predação das criações de rebanhos, já que as onças não fazem distinção entre animais domésticos e silvestres (leia mais a respeito no nosso post anterior).
Ilustrando essas mudanças resultantes de atividades humanas, a Caatinga atualmente possui apenas 57,9% de cobertura vegetal nativa, sendo que 40,33% do bioma foi modificado por intervenções antrópicas (Map Bioma, 2022), em decorrência da atividade pecuária, do desmatamento, colheita de lenha, implantação de assentamentos humanos, abertura de estradas e demais infraestruturas, como mineração e parques solares e eólicos. Esse constante aumento das ações humanas tem levado à uma substituição progressiva dos ecossistemas naturais por ambientes antrópicos (MARTINS et al, 2019), confira no infográfico abaixo:
Infográfico da evolução anual da cobertura e uso da terra (1985-2022). Fonte: Map Bioma (2022).
A implantação de usinas solares e eólicas na Caatinga por exemplo, embora seja uma alternativa aos combustíveis fósseis, é um grande fator que tem tem trazido fortes efeitos negativos para o meio ambiente e a vida selvagem, tornando-se uma das principais ameaças às onças da região. Saiba mais sobre o assunto nesta reportagem.
Parque de energia eólica na Caatinga. Foto: Arquivo Programa Amigos da Onça
Outro ponto significativo é que, devido à perda da cobertura vegetal natural e às constantes mudanças climáticas, a região central da Caatinga está se tornando cada vez mais árida. Um estudo realizado pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e CEMADEN (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) constatou um aumento significativo das áreas semiáridas no país, com um crescimento médio superior a 75 mil km² a cada década analisada, principalmente concentradas no Nordeste (exceto Maranhão) e no norte de Minas Gerais. E, o mais preocupante é que, na última década analisada, 1990-2020, foi observado o surgimento de uma área árida no norte da Bahia, e em Pernambuco (Saiba mais sobre esse estudo nesse artigo e reportagem).
Essas mudanças no ambiente natural podem induzir alterações no padrão comportamental dos animais silvestres, impactando também nas relações entre os animais e entre os animais e as populações humanas (DIAS, 2018). Diante desse cenário, as onças dessa região ainda enfrentam o desafio dos efeitos da crescente escassez de água na região (SCHULZ et al, 2017; DIAS et al, 2019).
Comunidade da Caatinga. Foto: Arquivo Programa Amigos da Onça
Com as constantes modificações em seu ambiente natural, é compreensível que, eventualmente, ocorra a aproximação desses animais às comunidades. É importante entendermos que as onças não devem ser consideradas vilãs nessa história. Essa movimentação faz parte do comportamento natural das onças, que buscam recursos essenciais como alimentos, refúgios e, principalmente, água. Também é essencial ter a compreensão de que as onças não foram introduzidas na região, elas sempre viveram ali – fato registrado em pinturas rupestres, e passaram a compartilhar território com os sertanejos.
Por isso, também é fundamental que quando se noticie uma informação de um ataque de onça, como o noticiado em Pernambuco, toda a situação seja contextualizada, evitando que seja gerada revolta da população contra as onças, que são animais altamente ameaçados de extinção, fascinantes e de suma importância para conservação de nossa biodiversidade.
A participação ativa dos órgãos ambientais, da sociedade civil em geral, e principalmente das comunidades locais, na implementação de estratégias que minimizem os conflitos existentes, é essencial para o desenvolvimento da coexistência com as onças. A educação tem um papel crucial para promover uma convivência mais harmoniosa, ao desenvolver uma visão mais ampla sobre a importância das onças na nossa biodiversidade. Porém, iniciativas práticas são igualmente necessárias para contribuir positivamente no duro cotidiano do sertanejo, como exemplo temos na região os chiqueiros anti-predação implementados pelo PAO, que auxiliam na redução dos ataques de onças aos rebanhos com a proteção desses animais domésticos no período noturno (leia mais neste post).
Confira abaixo um infográfico com orientações de como agir no caso de encontro com as onças, ou de predação do rebanho:
Infográfico com orientações como agir caso encontre uma onça. Elaboração: Programa Amigos da Onça.
Coexistir é garantir a proteção da vida selvagem e assegurar a vida humana como diretriz igualmente importante.
Escrito por: Alice M. G. Dórea (Estagiária voluntária do PAO)
REFERÊNCIAS:
DIAS, D. Influência antrópica sobre a probabilidade de ocupação de mamíferos carnívoros e as relações interespecíficas entre predadores e suas presas na Caatinga brasileira. 88 f. Tese (Doutorado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre ) – Universidade de Belo Horizonte, Belo Horizonte, 2018.
DIAS, D. et al. Human activities influence the occupancy probability of mammalian carnivores in the Brazilian Caatinga. Biotropica, v. 51, p. 253-265, 2019
MARTINS, C.; ESTEVES, C.; CAMPOS, C. Experiências com mamíferos na Caatinga. In: Karine Dalazoana. (Org.). Desenvolvimento Sustentável do Semiárido Brasileiro. 1ed. Ponta Grossa: Atena Editora, 2019, v. , p. 31-43.
SCHULZ, et al. Mudança de terra e perda de diversidade de paisagem no domínio fitogeográfico da Caatinga – Análise das relações padrão-processo com produtos de cobertura terrestre MODIS (2001–2012). Jornal de Ambientes Áridos, 2017, 136 , 54-74.
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