Paisagens da Caatinga: Perspectivas em Comemoração ao Dia Nacional da Conservação do Solo

 

Imagem: Michael Esquer

INTRODUÇÃO

A Caatinga é uma das florestas sazonalmente secas mais biodiversas do mundo, com extensão de  850.000 km² do território nacional, sendo o bioma mais representativo do Nordeste brasileiro. O nome do bioma, derivado do tupi [ka’a (mata) + tinga (branca)], traz referência à aparência da paisagem esbranquiçada por causa do tronco das árvores durante o período de seca, quando as suas folhas costumam cair. A região tem como característica um solo mais arenoso que, pela baixa retenção de água no seu interior, traz sazonalidade ao solo em função do volume de chuvas, criando condições únicas no bioma onde vivem, aproximadamente, 28 milhões de sertanejos, 125.251 espécies de animais e 50.313 espécies vegetais (IBGE, 2023).

Em comemoração ao Dia Nacional de Conservação do Solo, gostaríamos de desmistificar a percepção negativa sobre as características da região da Caatinga, que emergem na imaginação da maioria dos brasileiros como uma região de solo rachado, calor extremo, pouca vida e cheia de problemas sociais e econômicos.

SOBRE A DATA

O Dia Nacional da Conservação do Solo foi estabelecido pela Lei Federal nº 7.876, de 13 de novembro de 1989, em homenagem ao aniversário de Hugh Hammond Bennett, comemorado em 15 de abril. O Dr. Bennett, como era chamado, graduou-se em Ciências (com ênfase em Química e Geologia) na Universidade da Carolina do Norte em 1903, e teve toda a sua carreira dedicada a conscientizar a população sobre a importância do solo e em como a sua boa capacidade reprodutiva afeta as diferentes camadas da sociedade. Ele ficou conhecido como “pai da conservação do solo” e liderou projetos de educação ambiental, recebendo diversas honrarias pelo seu esforço em estudar algo tão pouco explorado na época. Estabeleceu-se a criação da data (em referência ao seu falecimento), em 7 de julho, porém, no Brasil, comemora-se o impacto dos seus estudos no seu aniversário, em 15 de abril (SOUZA, L. S. da., 2023)

FORMAÇÃO DO SOLO EM REGIÕES DE CAATINGA

Mapa dos solos do bioma Caatinga. Fonte: EMBRAPA, 2021.

A formação do solo é resultado da combinação de fatores estruturais à sua formação, ou seja, tanto a origem do material geológico quanto clima, relevo, microorganismos e tempo influenciam no aspecto e na aparência de um solo. Por ocupar diferentes áreas do país, desde o sertão do Maranhão até o nordeste de Minas Gerais, as regiões da Caatinga apresentam  diferentes características ao longo das estações no decorrer do ano. Os solos encontrados nessas regiões são variados: arenosos, rasos, profundos, pedregosos, e com alta e baixa fertilidade. As vantagens dessa variabilidade convertem-se em diferentes texturas, minerais, profundidades e capacidade de retenção de água, resultando em uma rica biodiversidade. A caracterização dos solos é resultado das diferentes relações entre o solo e o contexto do ambiente (COELHO, J. A. F. de., 2010).

 A fim de abordarmos um pouco dessa rica diversidade, explicaremos dois tipos de solo da Caatinga e suas regiões de ocorrência. Vem com a gente!

Depressão Sertaneja: essa região, que delimita o Nordeste brasileiro e chega ao centro-oeste mineiro, tem como característica uma superfície rebaixada e sem recortes, com algumas serras que quebram a sua monotonia. O solo dessa região é muito diversificado, com destaque para as rochas cristalinas, que chegam a formar coberturas importantes para o desenvolvimento de solos mais profundos.

De cima para baixo, neossolos litólicos (rasos, com rochas duras na profundidade e ocorrência em locais de pedregosidade), planossolos (solos de transição, com mudança textural e de cores acinzentadas) e luvissolos (pouco profundos, com alta atividade de argila e ocorrência em áreas de pedregosidade superficial).

A Depressão Sertaneja Setentrional no estado do Ceará. Imagem: Otávio Nogueira

Bacia do Jatobá-Tucano: Este outro solo é encontrado nos estados de Pernambuco e da Bahia, e tem como área sedimentar uma superfície bem mais elevada do que em algumas outras áreas (FILHO, J. C. A., 2010). Essa região apresenta diferentes feições geográficas e geológicas, com materiais datados entre o período Jurássico e Cretáceo. Desta forma, o solo dessas porções apresenta baixo nível de drenagem, o que torna-o pouco eficaz para a produção agrícola, por exemplo.

Borda da Bacia Sedimentar do Jatobá, com uma frente erodida em contato com a Depressão Sertaneja. Imagem: Rogério Valença Ferreira

Imagem traduzida da composição do solo da Região da Bacia do Recôncavo Jatobá-Tucano. Imagem: Wikipédia

RELAÇÃO FAUNA E AMBIENTE

Ao observarmos um solo, é possível encontrarmos diferentes espécies, desde as mais microscópicas (como os fungos do gênero Aspergillus) até aves como o Carcará (Caracara plancus), responsáveis por funções reguladoras distintas na cadeia alimentar. A importância dessa diversidade associada aos solos acarreta em um ciclo de auto regeneração e regulação das florestas, onde os organismos que ali vivem evoluíram em conjunto com as características específicas de cada região e sua ocupação. 

Ácaro (Hypoaspis miles) usado como uma forma de controle natural aos mosquitos e às pragas agrícolas. Imagem: Koppert

Porém, com a descoberta de novas tecnologias de plantio e exploração, esses organismos têm passado por eventos de extinções em massa por não conseguirem coevoluir com os impactos e perturbações aceleradas a que são expostos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em dados divulgados em 2023, existem mais de 481 espécies animais ameaçadas de extinção na Caatinga, sendo o segundo bioma com dados mais alarmantes de conservação do país (atrás apenas do Cerrado). Logo, os diferentes impactos antrópicos criam desafios maiores a serem combatidos pelo próprio homem a fim de proporcionar uma exploração sustentável dos recursos naturais, como os solos. 

O modo atual de produção agropecuária traz consequências para o solo que impactam diretamente a vegetação nativa, em decorrência dos processos erosivos, redução do volume e qualidade da água e impactos ao ecossistema local (FERRONATO, M. L., 2020). Ao longo dos anos, agricultores familiares têm observado essas modificações e tomado iniciativas voltadas à restauração ecológica da vegetação (EMBRAPA, 2017). Com isso, métodos de reflorestamento e recuperação do solo têm sido implementados por esses produtores, que mostram, na prática, como o resultado de pesquisas voltadas à superação desses desafios no meio rural são efetivos. O acesso dessas metodologias é disponibilizado por meio de cartilhas educativas, que disponibilizam alternativas diversas para a formalização da base ecológica em áreas degradadas, principalmente àquelas utilizadas para a produção familiar.

Etapas de aplicação da nucleação, que funcionam como pontos de partida para a regeneração da vegetação ao atrair animais e plantas, permitindo que outras espécies colonizem a área. Imagem: Felipe Ribeiro/EMBRAPA, 2017. 

IMPACTOS ANTRÓPICOS E FORMAS DE CONSERVAÇÃO

Infográfico ilustrando a cobertura vegetal e diferentes formas de uso e cobertura do solo na Caatinga. Imagem: Map Biomas

Apesar de o solo da Caatinga, de maneira geral, possuir pouca produtividade para exploração agropecuária, a região é marcada por outros impactos antrópicos como a exploração de minérios e o mal gerenciamento do solo já explorado. Assim, as áreas afetadas pelo fenômeno da desertificação têm crescido na região da Caatinga. A desertificação é, por definição da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (UNCCD), caracterizada “como um processo de degradação das terras que ocorre essencialmente nas áreas que se situam nas zonas áridas, semiáridas e sub-úmidas secas”. Os impactos da desertificação modificaram desde a composição da fauna até o modo de vida dos habitantes da Caatinga, devido à perda de solo arável, capacidade produtiva (ROXO, M.J., 2006), redução na infiltração e diminuição do escoamento de água. Essas modificações podem ser vistas em outras partes da América Latina e Caribe, também compostas por regiões de florestas secas, indicando a necessidade de ampliar e estruturar unidades de conservação para proteger essas regiões mais vulneráveis às mudanças climáticas.

A fim de pensar na proteção e estabilidade dessas regiões, manuais técnicos de conservação vêm sendo desenvolvidos e disponibilizados à população (leiga e especializada), ilustrando modelos de restauração, formas de plantio e estratégias a serem traçadas pensando na  conservação de espécies e em como produzir mudas de espécies vegetais a serem plantadas, desde a escolha correta do substrato até as etapas fundamentais para a ordem de plantio (ARARIPE, F. A. A. L., 2021). Outra forma de informar e incentivar o bom uso e restauração desses solos é por meio da educação ambiental, promovida por ONGs e núcleos de conservação por meio de cartilhas e palestras educativas.

Fluxograma para tomada de decisão sobre as estratégias de plantio a serem adotadas na recuperação de jazidas de extração, disponível no Manual para recuperação de áreas degradadas por extração de piçarra na Caatinga. Reprodução: EMBRAPA, 2010.

No Brasil, a gerência e responsabilidade dos solos de cada Estado fica delimitada ao órgão ambiental responsável daquele distrito. Porém, em nível nacional, a Sociedade Brasileira de Ciência do Solo (SBCS) trabalha há 75 anos pela difusão de conhecimentos e estímulos à preservação desse recurso fundamental do nosso cotidiano que, muitas vezes, passa batido.

Todos pisamos e vivemos sob algum tipo de solo, seja ele da tipagem que for. Promover a conscientização, a conservação e o uso sustentável dos solos é um dever para preservarmos as diferentes formas de vida encontradas em nossos biomas. Na Caatinga, as características naturais de seca e o déficit hídrico sazonal geraram uma variabilidade espacial e temporal no bioma, o que moldou o modo e estilo de vida de suas espécies, para mesmo em condições consideradas “não ideais” à sobrevivência, manter uma elevada biodiversidade. Para enfrentar as adversidades resultantes de processos industriais e exploratórios do solo que ameaçam a nossa fauna e flora, devemos nos debruçar sobre os ensinamentos promovidos por cientistas e ao legado deixado pelos povos originários e tradicionais ao longo dos séculos, apoiando-nos sempre em uma ciência de boa qualidade feita com e para o povo. Como ressaltado por Anna Maria Primavesi, engenheira agrônoma e pesquisadora ambiental, falecida em 2021, em sua obra “Manejo Ecológico do Solo”: “Não existem seres isolados, existem, somente, comunidades. […] É melhor cuidar do que exterminar”. Garantir o uso sustentável do solo garantirá a nossa sobrevivência como espécie, não só na Caatinga, mas em todos os biomas brasileiros. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) OLIVEIRA, Sandra Aparecida. 15 DE ABRIL – DIA NACIONAL DE CONSERVAÇÃO DO SOLO. Disponível em: https://semil.sp.gov.br/educacaoambiental/2023/04/15-de-abril-dia-nacional-de-conservacao-do-solo/. Acesso em: 05 abr. 2024. (2) [S.I.]. Os verdadeiros solos da Caatinga. Disponível em: https://noclimadacaatinga.org.br/os-verdadeiros-solos-da-caatinga/. Acesso em: 03 abr. 2024.

(3) SOUZA, Luciano da Silva; PAIVA, Arlicélio de Q.. Bennett e a conservação do solo. 2023. Disponível em: https://www.sbcs.org.br/wp-content/uploads/2023/04/Bennett-e-a-conservacao-do-solo.pdf.pdf. Acesso em: 07 abr. 2024. (4) PRIMAVESI, Ana. La Biologia del suelo. In: PRIMAVESI, Ana. Manejo ecológico del suelo: La agricultura en regiones tropicales. 5. ed. Buenos Aires: El Ateneo, 1984. Cap. 5. p. 123-145.

(5) ARAÚJO FILHO, José Coelho de. RELAÇÃO SOLO E PAISAGEM NO BIOMA CAATINGA. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/38909/1/Coelho-XIV-SBGFA-1.pdf. Acesso em: 08 abr. 2024.

(6) ARARIPE, Fátima Aurilane de Aguiar Lima et al. Pressões e ameaças em Unidades de Conservação federais da Depressão Sertaneja Setentrional, Nordeste do Brasil. Revista Brasileira de Geografia Física, Rio Grande do Norte, v. 14, n. 5, p. 1-15, 22 set. 2021. Bimestral. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/rbgfe/article/view/247715. Acesso em: 10 abr. 2024. (7) MORAES, Luiz Fernando Duarte de. Manual Técnico para a Restauração de Áreas Degradadas no Estado do Rio de Janeiro. 2013. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/197954/1/manual-tecnico-restauracao.pdf. Acesso em: 11 abr. 2024.

(8) ROXO, M. J. (2006), “O panorama mundial da desertiicação”, en Moreira, E. (ed.), Agricultura familiar e Desertiicação, João Pessoa, pp. 11-32. Disponível em: http://www.avesmarinhas.com.br/22 – Panorama mundial da desertificação.pdf. Acesso em: 11. abr. 2024

(9) SOUZA, Bartolomeu Israel; MENEZES, Rafael; CAMARA ARTIGAS, Rafael. Efeitos da desertificação na composição de espécies do bioma Caatinga, Paraíba/Brasil. Invest. Geog,  Ciudad de México ,  n. 88, p. 45-59,    2015 .   Disponible en http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0188-46112015000300045&lng=es&nrm=iso. accedido en  18  abr.  2024.  https://doi.org/10.14350/rig.44092. (10) BELANDI, Caio. IBGE atualiza estatísticas das espécies ameaçadas de extinção nos biomas brasileiros. 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/36972-ibge-atualiza-estatisticas-das-especies-ameacadas-de-extincao-nos-biomas-brasileiros. Acesso em: 18 abr. 2024.

(11) FERRONATO, Marcelo Lucian. A Restauração Ecológica pela Agricultura Familiar na Sub-Bacia do Rio Palha. Periódicos Ufpa, Belém, v. 14, n. 2, p. 140-161, dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/agriculturafamiliar/article/download/9233/6996. Acesso em: 18 abr. 2024.