Ecos do Passado: A Paleozoologia e Arqueologia da Caatinga

O termo fóssil é proveniente do latim fossilis, que significa “tirado da terra”. O registro fóssil e os estudos evolutivos das espécies são importantes para contar o passado, permitindo interpretar as adversidades e os fenômenos do nosso cotidiano nas mais diversas áreas do conhecimento: a Biologia, a Ecologia, a Geologia, entre outras. Por isso, hoje, nós destacamos uma parte fundamental desses estudos: a Paleontologia, mais especificamente a paleozoologia. Vamos conhecê-la um pouco melhor?

Infográfico explicando conceitos chave para diferenciar a Paleontologia da Arqueologia. Imagem: PAO.

1. O QUE É A PALEOZOOLOGIA E COMO ESSES ESTUDOS SÃO FEITOS

Por definição do Serviço Geológico do Brasil (o SGB), a paleontologia é o estudo dos fósseis e divide-se em três áreas: a paleozoologia (estudo dos fósseis animais), a paleobotânica (estudo dos fósseis vegetais) e a paleoicnologia (estudo dos icnofósseis, como pegadas, sulcos, perfurações ou escavações no solo). A paleozoologia dos vertebrados – ou melhor, paleovertebrados – abrange a sistemática e diversidade taxonômica desses animais, o que permite traçar estudos que alinhem o presente com o passado a fim de entender, conforme o passar do tempo, quais e como as modificações no planeta ocorreram até formá-lo como o conhecemos hoje.

COMO OS FÓSSEIS SÃO FORMADOS

O processo de formação dos fósseis é chamado de fossilização e é uma ação combinada entre processos físicos, químicos e biológicos que ocorrem quando nenhum outro organismo interfere no processo de decomposição daquele ser e/ou planta que morreu. No estudo dos animais, os três tipos de fossilização mais comumente encontradas, seja por pesquisadores ou cidadãos em visitas aos museus são: (via: Museu de Paleontologia da UFRGS):

  1. Incrustação: ocorre quando minerais carregados pela água cobrem os restos de um organismo, formando uma cobertura mineral que favorece sua preservação durante a fossilização. É um tipo de fossilização comumente encontrada em ossos e conchas em cavernas, onde a água é rica em minerais como o carbonato de cálcio.
  2. Recristalização: ocorre quando a estrutura cristalina de minerais instáveis de partes duras de um organismo (como a concha de moluscos) mudam para formas mais estáveis, mantendo a mesma composição química e perdendo as partes mais sensíveis.
  3. Concreção: ocorre durante o processo de decomposição dos organismos, onde são liberados compostos que desencadeiam reações químicas que causam a precipitação de substâncias que envolvem os restos orgânicos.

A esquerda, osso conservado por incrustação. Ao meio, molusco bivalve (Anodontites pricei) conservado por recristalização e, à direita, peixe conservado por concreção carbonática.

MÉTODOS DE ESTUDOS

Até aqui, tratamos da importância dos fósseis e como se dá o seu processo de formação. Mas, você sabe como eles são estudados?

A análise fóssil pode ocorrer por meio de conchas, dentes e ossos, o que permite a reconstrução de espécies e ecossistemas antigos por meio da comparação com animais da mesma espécie e família junto da construção de associações com base nas semelhanças entre eles. Uma outra forma de fazer essa associação é por meio do sequenciamento de DNA, que se acumulam e funcionam como “máquinas do tempo” (QUENTAL, 2015).

Além disso, os fósseis também podem ser estudados por meio da datação, que usa vestígios radioativos para determinar a idade de um objeto através do acúmulo de substância radioativa nele (FARIAS, 2002); além da análise de ambientes de preservação onde esses vestígios são mais comumente encontrados, como sedimentos de rios antigos e cavernas.

Diferentes tipos de fósseis, oriundos de diferentes processos de fossilização. Imagem: Instituto de Geociências da USP

REGISTROS FÓSSEIS DA CAATINGA

A Caatinga é um bioma restrito ao território brasileiro e, com isso, conseguimos encontrar animais que só existem nessa região – como o veado-catingueiro (Mazama gouazoubira) e a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). Essa exclusividade e diversidade pode ser encontrada, também, na paleozoologia do bioma, como veremos mais adiante a seguir:

As preguiças-gigantes foram alguns dos animais da megafauna (animais com proporções corporais além dos 44kg) que habitaram o solo das Américas na Era Cenozóica. Na Caatinga, foram encontrados alguns gêneros dentre os 88 já estudados até então, distribuídos na Lagoa de Uri de Cima – PE (VALLI, 2016), no município de Mauriti – CE (VALLI, 2018) e na Gruta da Roça Nova – BA (DANTAS, 2005). Em destaque a esse último local citado, a Bahia tem sido objeto de registro de fósseis da megafauna desde 1983, com enfoque nas grutas e cavernas localizadas na região; a espécie identificada na região pertence ao gênero Catonyx, a Catonyx cuvieri.

Ilustração de Marcio Castro sobre as preguiças-gigantes. Imagem: UFRGS

Outro animal pertencente à megafauna encontrado na região foi o tatu-gigante (Gliptodontes). Pertencente aos xenartros – grupo ao qual pertencem os tatus, as preguiças e os tamanduás – esses animais eram muito diferentes dos tatus como conhecemos hoje. A sua proporção corporal permitia atingir até 2m de altura e pesar até 1,5 tonelada, com uma cauda em formato de bastão e modificada para defesa e luta contra predadores. Na Caatinga, seus registros podem ser localizados na Gruta da Onça, BA (GUERRA, 2009) e no Estado da Paraíba (LIMA, 2015). recentemente (2020), uma espécie inédita foi registrada na Chapada Diamantina e recebeu o nome de Holmesina criptae, com idade aproximada de 21 mil anos, 2m de comprimento e peso de 200 quilos.

Reconstituição de um gliptodonte.

A esquerda, arqueólogos durante a escavação na Chapada Diamantina (via: UOL);  a direita, reconstituição do tatu-gigante (via: Wikipédia).

 

2. ARTES RUPESTRES ENCONTRADAS NA CAATINGA

A Caatinga abriga um dos mais ricos patrimônios de arte rupestre do mundo. A Serra da Capivara, no Piauí, é um exemplo notável, onde milhares de pinturas retratam cenas do cotidiano de povos pré-históricos, como a caça, danças e rituais religiosos. Esses registros visuais, que datam de até 12 mil anos, oferecem uma janela para as vidas e crenças desses antigos habitantes, revelando uma complexidade cultural surpreendente (confira nosso texto sobre a cultura da Caatinga). Hoje traremos outro pilar importante para os estudos feitos nessa região: os sítios arqueológicos, locais onde a concentração de elementos fósseis permite estudar mais a fundo a paleoarqueologia daquela região. Destacamos três dos diferentes sítios encontrados na Caatinga: 

ASSENTAMENTO NOVA ESPERANÇA (ALAGOAS): Aliados a Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os moradores do município de Olho D’água do Casado têm contribuído para a preservação das artes rupestres dessa região. Com a descoberta e catalogação de mais de 14 sítios arqueológicos, a região movimenta a economia local por meio de visitas turísticas pensadas na educação ambiental da região – que foi construída por agricultores familiares.

Foto das Equipes 10 e 13 no sítio arqueológico

Visita realizada a um dos sítios localizados no Assentamento, com a presença da arqueóloga Rute Barbosa. Imagem: Ascom FPI/AL

PARQUE NACIONAL DA SERRA DA CAPIVARA (PI): localizado ao sudeste do Estado do Piauí, este parque foi criado em 1979 com o intuito de preservar os vestígios arqueológicos do homem na América do Sul. Carregando o título de maior sítio arqueológico do país (ISA, 2016) a sua demarcação foi concluída em 1990 com a administração da área pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio) e, atualmente, serve como objeto de estudo das relações faunísticas da região.

Em estudo publicado (CAMPOS, 2021), a fragmentação das rochas permitiu identificar, interpretar e correlacionar dados ambientais atuais com aqueles de milhões de anos atrás. Um exemplo dessa análise ocorreu por meio da capivara (Hydrochoerus hydrochaeris), um animal com hábito de vida semiaquático. Isso mostra como o ambiente que hoje conhecemos como Caatinga sofreu modificações ao longo do tempo, visto que abrange algumas das regiões mais secas do país!

A esquerda, figuras associadas às capivaras do Sítio do Caldeirão Rodrigues, perceptível pelo formato peculiar da cabeça e focinho arredondado. A direita, a capivara como conhecemos hoje em dia.

Fotos tiradas por uma das orientadoras do projeto, Carolina Esteves, durante visita à Serra da Capivara. Imagem: acervo pessoal – PAO.

CENTRAL (BA): localizada à margem direita do Rio São Francisco, essa região (diferente das outras expostas até aqui) permite a visualização das artes rupestres fora de cavernas e grutas. Dentre os animais observados, os pesquisadores (BIGARELLA, 1984) destacaram a semelhança com o Toxodonte, animal que viveu na região há mais de 10 mil anos atrás e assemelha-se à uma anta. 

A esquerda, caçadores lutando com o Toxodonte; o estudo citado assemelha o animal ao boi que conhecemos hoje em dia, mas seus resultados não eram conclusivos. A direita, ilustração de como seria o Toxodonte.

BOQUEIRÃO DA ONÇA (BA): abaixo, expomos algumas imagens fotografadas pela orientadora do Projeto, Carolina Esteves, na região do Boqueirão da Onça, que é um dos maiores sítios arquológicos do país. Para saber mais sobre as artes encontradas nessa região, confira nosso post no Instagram!

Ao meio, registro do metatarso (dedo) de uma preguiça gigante, na Toca da Barriguda (BA). A direita, mais artes rupestres, onde podemos visualizar uma onça na parte superior.

3. IMPORTÂNCIA CULTURAL E ECOLÓGICA DESSES ESTUDOS

Independente do bioma e da área de estudo, ao analisarmos o passado de determinado grupo de pessoas e região conseguimos ter um panorama das possibilidades de acontecimento para o futuro. Na conservação ambiental (ciência que utiliza de um conjunto de ações que buscam o uso racional e sustentável dos recursos naturais), esses estudos permitem mapear e traçar estratégias para as mais diversas espécies, desde àquelas ameaçadas de extinção devido às ações antrópicas (realizadas pelo homem) quanto às já extintas. Assim, a importância da paleozoologia e da arqueologia vai além do mero conhecimento acadêmico; ela reside na capacidade de nos conectar com nossas raízes ancestrais e na responsabilidade de proteger e valorizar nosso patrimônio. Continuar a investir na pesquisa e na conservação dessas áreas é essencial para manter viva a história da Caatinga e do homem americano, inspirando um respeito duradouro pela nossa herança e pelo ambiente.

Os sítios paleolíticos são bens da União e protegidos pela legislação federal, Lei nº 3.924/1961, com um órgão responsável pela sua proteção: o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Abaixo, listamos alguns museus que promovem exposições e, em alguns casos, atividades de educação ambiental acerca dos artefatos listados até aqui:

Essa experiência pode ser vivida, também, por ambientes virtuais, como a página do Museu Nacional (antes do incêndio de 2018) e o Museu de Paleontologia Irajá Damiani Pinto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A paleontologia da Caatinga revela um rico passado e, por meio dos museus e unidades de conservação, preserva esse patrimônio e dissemina conhecimento sobre a história. A educação ambiental e o estudo de fósseis fornecem informações valiosas para enfrentar desafios ambientais atuais e futuros que, por esforços conjuntos, terão a sua riqueza natural e histórica apreciadas pelas futuras gerações.

 

REFERÊNCIAS

  1. FERRAZ, Joseane Salau. Museus de Paleontologia no Brasil. Disponível em: https://arqueologiaeprehistoria.com/museus-de-paleontologia-no-brasil/. Acesso em: 20 maio 2024.
  2. JOSÉ BIGARELLA, João; DA CONCEIÇÃO DE M. C. , Maria; ELBA MORAES REGO TOTH, Beltrã. Registro de Fauna na Arte Rupestre. Revista de Arqueologia, [S. l.], v. 2, n. 1, p. 31–37, 1984. DOI: 10.24885/sab.v2i1.33. Disponível em: https://revista.sabnet.org/ojs/index.php/sab/article/view/33. Acesso em: 21 maio. 2024.
  3. CAMPOS, Luana; BUCO, Cristiane de Andrade. As representações faunísticas na arte rupestre do Parque Nacional da Serra da Capivara, como indicadores de mudanças climáticas e resiliência. Percursos, [S.L.], v. 22, n. 49, p. 171-197, 10 set. 2021. Universidade do Estado de Santa Catarina. http://dx.doi.org/10.5965/1984724622492021171. Disponível em: http://portal.amelica.org/ameli/journal/815/8154395009/html/. Acesso em: 19 maio 2024.
  4. FEDERAL, Governo. Assentamento Nova Esperança (AL) alia conservação do Patrimônio Arqueológico ao desenvolvimento territorial. Disponível em: https://www.gov.br/iphan/pt-br/assuntos/noticias/assentamento-nova-esperanca-al-alia-conservacao-do-patrimonio-arqueologico-ao-desenvolvimento-territorial. Acesso em: 19 maio 2024.
  5. CUNHA, Lucca. Fósseis. Disponível em: https://www.ufrgs.br/museupaleonto/?page_id=735#:~:text=Incrusta%C3%A7%C3%A3o%3A%20%C3%A9%20quando%20minerais%20carregados,como%20o%20carbonato%20de%20c%C3%A1lcio. Acesso em: 18 maio 2024.
  6. MESSIAS, Dhiego. PROCESSOS DE FOSSILIZAÇÃO. Disponível em: https://mundodapaleontologia.wordpress.com/2013/03/16/processos-de-fossilizacao/. Acesso em: 23 maio 2024.
  7. FARIAS, ROBISON FERNANDES. A química do tempo: carbono 14. QNESC, v.16, 6-8, Novembro, 2002. 
  8. VALLI, ANDREA MARIA FRANCESCO; MUTZENBERG, DEMÉTRIO. Observações sobre a Repartição Espacial dos Restos Fósseis de Preguiça-Gigante (Gênero Eremotherium) na Lagoa Uri de Cima, Pernambuco, Brasil. Revista Brasileira de Paleontologia, v. 19, n. 3, p. 505-526, 2016.
  9. VALLI, Andrea MF. DESCOBERTA DE RESTOS FÓSSEIS DE PREGUIÇA GIGANTE NO MUNICÍPIO DE MAURITI, CE, BRASIL.
  10. DANTAS, MÁRIO ANDRÉ TRINDADE. Sobre a ocorrência da preguiça gigante Catonyx cuvieri (Lund, 1839) na gruta da Roça Nova, Paripiranga, Bahia. PALEO NORDESTE, p. 9, 2005.
  11. GUERRA, Castor Cartelle; MAHECHA, German Arturo Bohorquez. Pampatherium paulacoutoi, uma nova espécie de tatu gigante da Bahia, Brasil (Ledentata, Dasypodidae). Revista Brasileira de Zoologia, v. 2, p. 229-254, 1983.
  12. DE MENESES, Leonardo Figueiredo. SÍTIOS PALEONTOLÓGICOS COMO REPRESENTANTES DA GEODIVERSIDADE NA PARAÍBA.

Escrito por: Maria Eduarda Ferreira Rosinda (Estagiária voluntária do PAO).

 

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